
Estreou-se em 1958 com O Grito Claro, um grito lúcido de liberdade e irreverência contra o agrilhoamento da ditadura; denunciava um tempo de opressão - "O tempo duro / com unhas de pedra", "o tempo dos sonhos / sem coragem para poder vivê-los" - e um tempo de trevas labiríntico - "A noite trocou-me os sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita".
No poema Boi da Paciência, numa alusão ao sonho amordaçado, levanta uma questão, não de retórica, pois evidenciava-se a resposta: " Todos os dias cumprido com as leis do diabo / todos os dias metido pelos olhos adentro / numa evidência que nos cega / até quando?". A sua poesia parecia, assim, querer gritar outras razões, sair de um "espartilho", e atingir todo o real: " Não posso adiar o amor para outro século / não posso / ainda que o grito sufoque na garganta"./."Não posso adiar o coração" e, ainda, "As paisagens continuam a existir. / As paisagens são suaves. / Continuam também a existir / outras coisas que dão matéria para poemas.".
A viragem anunciada concretizava-se nos anos 60, com uma linguagem poética menos codificada e mais despojada, "sem pintura / mas bela e natural", onde abundam a luz, a vida, a liberdade - o sol, a lâmpada, a água, o vento - numa fusão de encontro à felicidade, ao amor e à perfeição: "Se nos teus olhos os olhos se me perdessem / nova água, sol e vento se fariam / através de um só corpo de alegria."; "Todas as palavras se iluminam / ao lume certo do corpo que se despe, / todas as palavras ficam nuas / na tua sombra ardente.". Definitivamente, as palavras encontravam o seu caminho de penetrar o mundo para o habitar, e a escrita aparece como um desejo de "tornar habitável o deserto" da alma, da existência - "Escrevo para não viver sem espaço, / para que o corpo não morra na sombra fria"; " Caminho um caminho de palavras / (porque me deram o sol / e por esse caminho me ligo ao sol / e pelo sol me ligo a mim". Ensina-nos como pela palavra a reconciliação com o mundo é possível: "Eu tudo sei e assim descubro / a luz, a água, o pão, o corpo: / habito a terra, habito mais, / contra mim mesmo descanso e nasço".
Considerado o "eterno aprendiz", ou o "aprendiz secreto" que aprende no silêncio das coisas, aquele por quem "O vento passa como uma pá", e que vive "devorado de espaço, aberto à luz, como um tronco a que uma cabeça assoma voltada ao horizonte", Ramos Rosa procurou sempre depurar as palavras e encontrar novas possibilidades no poema. Nos anos 80, a poesia ramos-rosiana atinge um novo fulgor nas metáforas e na musicalidade e o seu "corpus" reflexivo ganha novo alento.
Em O Volante Verde (1986), um "volante" poético, um voo de pujança, dá-nos uma lição de felicidade e esperança: "Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou. / Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde. / O que eu amo está perto entre a terra e o ar."; " Algo nos cria e nos liberta dos absurdos cercos. / Despertámos para tocar a boca esquecida pela noite. / Somos a folhagem e o espaço, somos uma garganta fresca. /As sombras aquecem-nos e as estrelas visitam-nos. / O meu corpo é de argila estou vivo e aceito o dia."
Considerado um poeta "da luz", é também um poeta da lucidez porquanto assume as ambivalências da vida, que na existência existe o "irresolúvel", a luz e a sombra, o vazio e a plenitude, o "Sim" e o "Não".
Um dos grandes encantamentos da sua poesia está no "olhar original", inocente, sem uma pré reflexão, com que olha as coisas, o que lhe permite o júbilo constante da descoberta. Esta postura fê-lo aproximar-se da filosofia oriental do Budismo Zen. Dá-nos o exemplo de um momento de alegria quando, um dia, observou "pela primeira vez" uma formiga no seu percurso sobra a folha branca, na qual escrevia.
Outro dos seus grandes ensinamentos é levar a ouvir-nos o que o silêncio, na sua textura secreta, nos pode dizer. Os silêncios falam e podemos ouvi-los na sua linguagem poética.
nota: elaborei este texto, há quatro anos, como celebração dos 80 anos do poeta António Ramos Rosa. Foi editado no site TriploV
© Teresa Sá Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário