Interpretar a grande cidade absorvendo-lhe o pulsar é a proposta do livro «Absinto – A Inútil Deambulação da Escrita» de Rui Herbon, editado em 2005 pela Parceria A. M. Pereira, Lisboa, e galardoado com o Prémio Literário António Paulouro 2004 da Cidade do Fundão.
Galvanizado por um narrador que deambula, o leitor recebe as palavras, como bolhas translúcidas, verdes da cor do absinto, com as quais constrói a sua própria sensação da urbanidade. Escritor e leitor seguem a par por 173 páginas ou ruas com muitos enigmas, imersos «em pensamentos como os mendigos abismados», atentos à cor, ao som, à luz, às sombras, às gentes, antes fechadas nos actos costumeiros de quem por tanto passar já não vê. E não há indiferença nesta Lisboa de Rui Herbon, desnudada por alguém que tem o amor no olhar, e a crítica no humor. Quem conhece Lisboa, com as palavras de Rui, redescobre-a. Quem não a conhece cria-a. Lisboa total, inteira, que amanhece e anoitece. Assim se faz a cidade que perdura. Assim se faz uma escrita de leitura indispensável.
A deambulação é feita por um narrador/escritor que não tem nome, nem é preciso tê-lo: pelas cumplicidades criadas, o leitor conhece-o desde sempre. O ponto de partida é um apartamento no Chiado, de dois pisos, ao qual o Eu «chegava por uma íngreme escadaria de degraus curtos», no topo de um prédio de esquina, junto das Escadinhas do Duque que «quase todos os dias subia ou descia, ou subia e descia». A dificuldade com que se «palmilha» a cidade, e a vertigem dos espaços onde se processa a deambulação, incorpora a alegoria da criação literária, e numa espantosa coesão, espraia-se ao longo de todo o romance nos mais diversos sinais: a história «O Fim» apresenta o imortal Al Gahel, o sobrevivente da Atlântida, o sangue comum a todos nós, que regressa a Lisboa para se suicidar. Para chegar ao seu quarto de sempre, no “Hotel Cervantes”, tem de subir «vinte e quatro degraus a direito, vinte e quatro multiplicados pela meia dúzia de vezes que ali se hospedara». Atestando a sua passagem pela vida, deixa um livro precioso, um Diário.
Deambulando, o Eu observa a cidade em cada instante munindo-se da técnica impressionista, com recurso às sinestesias, que permitem transmitir impressões e sugestões da realidade, e conferem ao todo grande plasticidade estética e prazer na leitura. Por este processo surgem os vagabundos, as estátuas, a gente buliçosa, os de olhar turvo e sem brilho, a massa de figuras e rostos, táxis alinhados, a velha taberna de esquina, suja e sebosa, o buzinar forte, etc. Deste manancial efémero destacam-se fios que ao irem ficando na percepção do sujeito, logo, na narrativa, vão-se fortalecendo: o caso de uma rapariga com quem se cruzou, no Castelo, com a qual «trocou por breves segundos um olhar frontal e cúmplice, que recordo até hoje»; a «misteriosa, insondável e desejada» que percorre toda a história, mas da qual se sabem apenas traços físicos e que usava sandálias de tiras.
Sendo Lisboa «uma cidade duplicada» – com duas placas para o mesmo local, uma com nome pomposo outra com o nome que todos conhecem –, também a noite mostra a outra face de Lisboa ou a duplicação de uma mesma parte: os noctívagos que na noite deambulam num processo de evasão da sua própria noite. É a noite que traz ao Eu o insólito Emílio Montalbán, que o “apresenta” à Sociedade internacional do Absinto. Um espanhol que andava sempre com uma pasta e que caminhava com um cão a seu lado, «nem atrás nem adiante», coxo da pata direita, um rafeiro «reles, surrado a fomes e abandonos, de pêlo caído, gasto e da cor das coisas que envelheceram, vestido com uma farpela preta e surrada, como a do dono».
O primeiro contacto táctil do Eu com Emílio é feito com uma vibrante imagem impressionista, mas também surrealista: «apertei-lhe a mão estendida, era engelhada e fria, as gelhas escorregavam entre os meus dedos». A noite é o lugar também das sombras humanas, do apelo sexual como procura de salvação, mas que encontra o “não ser”; é exemplo disso o “engate”com Sofia ou com Rosário. Outrossim, o olhar crítico sobre o “burguesismo fácil” está evidente em Sofia, a «Infanta da lavoura», com o seu carro vermelho descapotável. Ele observa-a, no quarto dela, deitado numa «cama com um colchão ortopédico com campos magnéticos e um edredão de penas às riscas, o papel de parede condizia, os tapetes condiziam, as cortinas condiziam e até o estofo de uma cadeira condizia». Mais do que o corpo dela, são estas observações que lhe ficam.
Construído de episódios ou quadros do real quotidiano, o enredo é vertiginoso com um caos que a escrita disciplina. O autor dispensa o ponto final e outras marcas da pontuação, mas não se pense que a desobediência às regras da prosódia faz com que esta escrita seja rúptil. Ao mesmo tempo que Lisboa se vai construindo, palavra a palavra, e a frase invadida pela vertigem sensorial, surge uma entidade inusitada: o leitor. A artimanha está na alternância entre a objectividade, verosímil para o leitor, e o recurso subtil à emoção, com que enreda o leitor que segue, quase hipnotizado, ao encontro do Eu que, por isso, passa a ser cada vez menos anónimo, pois passa a ser muitos, tantos quantos os leitores e os momentos de leitura. No momento perfeito, o leitor surge na intimidade da casa onde se escreve, através da vizinha da frente: «Ela chegou e invadiu tudo(…) apoderou-se de mim a ideia de que a palavra que estou a escrever é exactamente a mesma que ela lê nesse instante».
O leitor partilha a escrita, observando o momento em que o narrador, na sua secretária, preenche a página em branco, dá forma à sua escrita interior: «os olhos escorrendo desde a parede ou desde a janela para a folha, prolongando pensamentos e imagens.». Escritor e leitora permanecem naquele local, «a escrever e a ler em simultâneo, a horas certas, todos os dias». O livro termina com a voz da rapariga das sandálias pedindo um shot de absinto com groselha. Não sabemos mais nada. Um final aberto num livro de deambulação, onde é evidente “A inútil deambulação da escrita”: deambular não é chegar. É sempre partir.
Este livro é um contrato do autor com o leitor. Porque a imaginação é um movimento, e as palavras o impulso, este pacto é prolongável no tempo: será difícil ao leitor esquecer-se deste «Absinto».ver aqui Entrevista a Rui Herbon
© Teresa Sá Couto
nota: texto elaborado em 2005
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