sexta-feira, 3 de outubro de 2008

MORREU DINIS MACHADO

Definitivamente, há coisas do Diabo: no dia em que a Orgia Literária edita o meu texto sobre o magnífico e reeditado policial «Mão Direita do Diabo» de Dennis McShade (pseudónimo do nosso Dinis Machado) tenho de dizer que o autor, de 78 anos, acabou de falecer.

Os amigos já se preparavam para a despedida, mas ele, insurrecto por natureza, resolveu antecipar-se-lhes. "Pois!", diria Maynard. Morreu Dinis Machado, ele que, pela mão da sua escrita, tantos momentos de vida me deu a viver. Muito obrigada, Dinis. E acredito que tu saibas a desmesurada gratidão que os teus leitores têm para contigo.
Continuaremos a encontrar-nos sempre que eu te ler, e ler-te-ei enquanto viver!

nota: a fotografia de Dinis Machado, aqui reproduzida, foi colhida no site do escritor e jornalista Viriato Teles, onde se encontra uma magnífica entrevista ao Dinis, realizada em 2006.

Texto editado hoje, dia 03.10.2008 na Orgia Literária :

Mão Direita do Diabo, Dennis McShade

À necessidade de pôr o pão na mesa, junte-se o amargo e o doce da vida, uma mão cheia de livros lidos e a linguagem da rua. Envolva-se tudo com perícia e lance-se na eternidade, em três doses. A fome dos leitores será a levedura.

Após 40 anos e 1199 edições, o Mão Direita do Diabo de Dennis McShade, pseudónimo do nosso Dinis Machado, regressou às livrarias para nos relembrar que a genialidade é imperecível e mostrar a fome que temos destas leituras. E o primeiro título da saga policial McShade não vem só: projecto de reedição abraçado pela Assírio&Alvim, aquele título faz-se acompanhar pelos desejados, e há muito esgotados, Requiem para D. Quixote, a editar no final deste mês de Outubro, seguindo-se, nos primeiros meses de 2009, o Mulher e Arma com Guitarra Espanhola. Escritos por encomenda, num período de dificuldades económicas do autor, os três policiais, publicados entre 1967 e 1968, seriam o afinar da mão para o mítico e inigualável O Que diz Molero, editado dez anos depois, refere José Xavier Ezequiel no excelso posfácio de lavra dúctil, expedita, colorida e envolvente, onde se apresenta Dinis Machado – o homem, o seu tempo e a sua escrita – e com que bem se finaliza este Mão Direita do Diabo.

«Nado, criado e aculturado em filmes negros americanos no Bairro Alto», Dinis Machado «e o policial negro são unha e carne, quase como se tivessem andado na mesma escola, ou assentado praça juntos», diz José Xavier Ezequiel. E se a tríade policial McShade bebe o ensejo e o incentivo nos policiais negros de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, escritores americanos dos anos 30, Mão Direita do Diabo surpreende de imediato pela narrativa que, assente na personagem principal, cria um método e é fortalecida por ele: o disparo certo, no momento certo, sem desperdício de munições; que faz grande um género considerado menor; de uma leitura que, não permitindo paragens, nos sacode, a um mesmo tempo, com o espanto, a reflexão, o sorriso e até a gargalhada; com estreita ligação ao cinema e, fortíssima, à Banda Desenhada; com linguagem depurada, voluptuosa e desconcertantemente simples, capaz de chegar a todo o tipo de leitores com o mesmo arrebatamento inaudito, a revelar o carácter democrático da literatura, só possível por um escriba raro, tão raro que encobre o nome em Dennis McShade.

Por outro lado, se Dashiell Hammett criou a personagem Sam Spade, e Raymond Chandler criou Philip Marlowe, Dennis McShade surge com o admirável Peter Maynard, o assassino profissional de «obra limpa, completa, em profundidade e extensão», com nervos de aço e uma úlcera no estômago que é «uma broca», que cita Camus, lê Steinbeck, Dos Passos, Celine, e se apraz com o Kama Sutra, que ouve Bach, Beethoven e Mozart, e encontra serenidade nos braços de Olga.
É este «Califa» que se move em Nova Iorque, Las Vegas e Chicago, com a Beretta sempre oleada pronta para matar, de insuspeito sangue português, insuspeito para os censores da PIDE, pois o leitor atento não só suspeita, como o reconhece: na nostalgia de uma vida onde somos títeres, no olhar sobre as almas errantes nas ruas esconsas ou num bar sórdido de uma cidade da América, mas onde ressuma a nossa Lisboa e os bares onde se bebe a solidão.

Mão esquerda de Deus

«Matar pessoas é uma tarefa esgotante, principalmente pela longa espera e o ritual que envolve. É uma tarefa de perito, uma coisa que exige especialização nervosa», diz Maynard, incumbido de matar quatro homens. Escrupuloso e eticamente irrepreensível, Maynard traça científica e pormenorizadamente o plano, que a urdidura revela aos poucos, como manda a regra do género policial. Ao mesmo tempo, Maynard tem de traçar outro plano, com mais improviso, para escapar aos «assassinos confederados» do Sindicato, instituição de crime organizado que lhe emite uma ordem de execução por não lhe agradar a independência de Maynard que, transgressor, teima em trabalhar sozinho. É, aliás, este carácter solitário que estrutura a personagem e, por ela, se estrutura a narrativa, confirmando-se que a solidão medita e a meditação cria; de poucas falas, Maynard é reconhecível pelo «Pois», o seu cartão de visita, e nunca um «Pois» disse tanto na história da literatura: ele é cicio e clamor, assentimento, inevitabilidade, sarcasmo, sátira, desafio, ironia, sinceridade e simulação; ele responde, comenta e exerce o direito a não comentar.

Surpreendentemente, é a dificuldade de Maynard em construir uma conversa que origina diálogos magníficos; é, também, essa espécie de desprendimento, que lhe granjeia junto das mulheres um interesse inaudito, com a narrativa a apresentar quadros de sedução hilariantes; é, ainda, devido a esse carácter solitário, que se explora, brilhantemente, a psicologia das personagens, mas também a psicologia do leitor, enredado num jogo sensorial e intelectual, e hipnotizado pelo balancear das palavras.

Se o solitário Maynard fala pouco, todavia pensa muito, mesmo que pense «só na dose certa». Se a narração na primeira pessoa lhe permite revelar pensamentos, a narrativa segue, a par da urdidura policial, noutra grande frente: a dos monólogos maynardianos, em itálico, conversas de Maynard com Maynard, mergulhos de intimidade, onde ele se recrimina, sorri para si próprio, admoesta, invoca a lucidez, revê os planos e os métodos, faz conjecturas e fala com o leitor. É Maynard, «lobo acossado, que até foge de si próprio», a mostrar o seu barro, a sua desdita, a razão da úlcera no estômago que vai acalmando com copos de leite.
É, finalmente, a solidão deste «bicho nocturno, velha toupeira kafkiana», que lhe permite olhar para o ser humano com solidariedade, a solidariedade dos entravados, mesmo para aquele que cairá, pela força do dever, com a sua mão: «Olhámos um para o outro, quase com simpatia. Meu caro Eddie Piano, formiga humana, pobre diabo.».

Concluindo, alerte-se que é impossível não se venerar este homem do «dedo no gatilho», que com os sapatos de borracha se sente um gato e «com o silenciador na arma, um homem». Afinal, como o próprio texto aventa, Maynard é a «mão direita do Diabo» ou – e mais correctamente – a «mão esquerda de Deus», um seu filho preterido a quem coube ser o «emissário dos ódios intactos»?

Seja como for, «se os crimes de Maynard não são obras de arte, a arte é que fica a perder»; e fica o leitor que não tiver a felicidade imensa de se encontrar com estas leituras.

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Anónimo disse...

Hoje fumei uma cigarrilha na esplanada. Pareceu-me uma óptima maneira de homenagear o Dinis Machado. Não sou carpideira nem abutre. Não me apanham no espectáculo da morte. Prefiro celebrar a vida e os livros que permanecerão para sempre. Fumei a cigarrilha, mas faltou-me o uisque. Desculpa, Dennis McShade. (Se o encontrares por aí, manda um abraço meu ao Cardoso Pires) Talvez beba um logo à noite. Talvez logo à noite releia "O que diz Molero". Talvez Molero me diga, entrelinhas, o que pensas desta porra toda!
Rui Herbon

Teresa disse...

Boa,Rui!! Grande Homenagem, aqui fazes!!! E sai um uisque ao Dinis, e mais outro, até cair!

Beijo Grande
Teresa

Claudia Sousa Dias disse...

deixei um comentário na Orgia Literária relativamente ao teu post sobre este autor...

:-))

um beijinho

Teresa disse...

Olá, Cláudia
Só vi agora; como os comentários da da Orgia não seguem individualmente para nós, escapou-me. Obrigada pelo aviso. Já respondi.
Beijo Grande

TSC