«Ninguém fala de termos olhos capazes, / rectos sobre a terra, sem mentir. / Ninguém fala de dissolvermos os enigmas apenas /para desdobrarmos, no fundo deles, os poemas /que os fazem iluminar.». Iluminar lugares esconsos da alma é o ditame do livro de poesia Ardem as Trevas e Outros Lugares de Helena Carvalhão Buescu.
Intimista, subtil, carismática, esta poesia é para ser lida sem pressas, pois só nesse modo sábio ela se liberta, pujante e dialogante. Assim: «pouco a pouco, lentamente, / despimos as palavras e nelas nos despimos, /apresentando a caprichosa alma:/acordando, vestimos a pele/do que aprendemos a tocar,/ sabemos quão breve é este instante,/ e quão frágil a hora de voar.»
Os homens têm feridas que não se vêem: «Ruivo é o medo», «ruiva é a redonda angústia», lembra-nos Helena Carvalhão Buescu. Com palavras que nos levam de visita às «dobras do que chamamos destino», aos dias que habitamos, «quase de noite», aos dias que sangram, a autora abre as portas daquela casa subterrânea: «As palavras estão ali, e são feridas, quando é preciso; os silêncios também. Porque as mãos são feitas do tempo das nuvens que caíram, os gestos também: como as sementes, as noventa sementes plantadas na terra.». Organizado em três grandes partes, este compêndio poético desafia a caminhar na «secreta raiz», pelos corredores da inquietação e do estremecimento, possibilitando-nos vestir a pele das coisas vividas e ter nesse gesto um apaziguamento inenarrável. Neste sentido – da mão estendida em direcção a nós, que nos pacifica – esta é uma poesia de revelação, de esperança, contra o esquecimento, contra a morte. Abençoadas mãos que nos devolvem assim as palavras, «o nome das coisas» agrilhoadas na alma. Para conferir nas 121 páginas e nestes extractos:
Perante a morte estamos sempre sozinhos. Umas vezes de pé, desassombrados. Outras deitados em concha, no soalho. Umas vezes dela falamos, outras não. Nessas fingimos ter a fala neutra e esquiva, Como se a tristeza não enchesse o horizonte.
Sozinhos perante ela certo é que estamos. Dobramos o riso na curva dos caminhos, Juntamos mãos a outros gestos já traçados, Calcamos passos sobre a terra E beijamos, nos nossos filhos, A memória que, nossa, não teremos.
Traço as letras. Ao traçar as letras, Sei de que falo. Entretanto, nunca o saberei.
**** Talvez tenha sido esse o dia (foi seguramente)em que falaste de asas,como se a noite as fizesse crescerpor delas falarmos:e houvesse, ao nosso lado,o intermitente rufar das suas penas.
**** Só ontem disseste caminhamos sozinhos, e por isso só ontem te entendi: o silêncio do mundo está cheio de vozes.
Ardem as trevas e outros lugares, Helena Carvalhão Buescu; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007 © Teresa Sá Couto |
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