Jóia da poesia erótica portuguesa, a antologia poética «Música de Cama» de David Mourão-Ferreira – também título do último livro de poemas do autor (1993) – colige 100 poemas escritos ao longo de quarenta e cinco anos, acompanhados por dois desenhos em grafite de Francisco Simões.
O livro, cuja primeira edição foi lançada em 1994, é um voo rasante de Eros pelos enredos e segredos indecifráveis da pele: «Nem o Tempo tem tempo /para sondar as trevas /deste rio correndo /entre a pele e a pele /Nem o Tempo tem tempo /nem as tréguas dão tréguas /Não descubro o segredo /que o teu corpo segrega». O segredo da intemporalidade desta poesia estará na matéria de que é feita – Água, Fogo e Música –, e na torrente que a declara: a dança intensa e sôfrega do jogo dos corpos com que se sugestiona e desafia a imaginação do leitor, que nela reconhece a matéria e o pulsar das próprias veias.
Os mistérios da pele
Desde «A Secreta Viagem» (1948-1950), a poesia davidiana procura «decifrar o mistério» do desejo e do corpo. Diz Eduardo Lourenço que a viagem de David é secreta, «não porque em si mesma se esconda aos outros, mas porque é a viagem que se faz em torno de um segredo, guiando-se às cegas pela rota do segredo». Em «Tempestade de Verão» (1950-1953), contrapõe-se a sensação à razão com esta a inviabilizar aquela: «O amor é só de quem os olhos cerra /no desalmado instante da entrega. /Cerrai-vos, olhos meus, antes que cega /vos cegue a lucidez que nos faz guerra.».
Por isso, o sujeito poético perscruta e mergulha no Caleidoscópio que é o «Tu e o Mundo», em jogos de fluidos – saliva, suor, lágrimas, esperma –, consequência do tumulto dos corpos incendiados dos amantes, como «Dois unidos archotes a galope». O corpo do desejo surge descrito sugestivamente: como uma tenacíssima tenaz; membros como arbustos; o bosque da púbis; cordas de nervos; teias de veias; o som do alaúde nos toques dos dedos; como vários conjuntos de dois hemisférios de um vasto império ingovernável: os seios, as pálpebras, os joelhos, as nádegas, e as duas metades da alma, «uma de tudo, outra de nada».
Em «Do Tempo ao Coração» (1962-1966), David apresenta o amor cativo do fogo – «sempre esse frio sórdido, a seguir /ao fogo em que nos qu´remos consumir» –, e do mistério indecifrável da pele: «Quem foi que à tua pele conferiu esse papel /de mais que tua pele ser pele da minha pele». Porém, se o amor aprisiona, ele só pode ser vivido em liberdade: «Quis a tua nudez Não quis que te despisses».
O Jogo do amor é, ainda, feito de fluxos e conluios – com a «Sede do desejo», «seda da pele», dos «pés ao ventre/das ancas à nuca /ouve-se a torrente /de um rio confuso» –, onde tudo se troca e «investe-se a perda e o ganho em futuras empresas de segredo» e onde se aprende que «o não-ser pelo ser se troca». Também Jogo de espelhos, entre os protagonistas do enredo poético e o leitor convocado para a apoteose sensorial. Em «O Corpo Iluminado» (1987), um considerável conjunto de poemas explana a apoteose do prazer, com o ritmo do acto sexual urdido na poesia é acompanhado pela cadência fónica das palavras escolhidas: «é nesse ponto /de tuas coxas /que o meu pescoço /implora a forca /…/agreste gosto /de húmida polpa /o que dissolvo /dentro da boca /Eis num renovo /mágica força /Rei me coroo /em tuas coxas»; «És quando estás de joelhos /que és toda bicho da terra /…/se de joelhos me entregas /sempre que estás de joelhos /todos os frutos da Terra».
Se o corpo é apoteose de Tudo, também é o arquitecto do Nada, é o sentido e o sem-sentido, é a luz e a sombra, é, em suma, a força de equilíbrios e desequilíbrios: «Nada garante que tu existas /Não acredito que tu existas /Só necessito que tu existas»; «É de ti que me escondo /Em ti é que me firmo /Antes de já se ontem /sentir que estamos vivos».
Afinal, como diz o poeta, «Nós temos cinco sentidos: /são dois pares e meio de asas. /- Como quereis o equilíbrio?».
Afinal, como diz o poeta, «Nós temos cinco sentidos: /são dois pares e meio de asas. /- Como quereis o equilíbrio?».
(to Artur)
© Teresa Sá Couto
11 comentários:
bom :)
Não conheço muito do DMF. Mas do pouco que fui conhecendo e pondo no blog gosto muito.
bjs
hb
Grande poeta, o Mourão-Ferreira. Mas não nos podemos esquecer desse grande romance que é "Um amor feliz", na minha opinião uma das melhores ficções portuguesas do século XX.
Olá Hugo
A poesia erótica de DMF é uma questão de gosto...pois.
Eu gosto das voltas que ele dá às palavras para as mostrar íntimas e indiscretas ;)
Bjs
TSC
Olá Rui
Também tenho um texto sobre «Um Amor Feliz»..rsrs, mas nem sei onde ele anda, o que também não é novovidade.
Para mim, os contos «As Quatro Estações» são o melhor da ficção de DMF. Uma pérola. Tenho de ir procurar esse texto que fiz há cerca de 3 anos, para o colocar aqui...
Bjs
TSC
olá T. que prazer vir e encontrar um longo longo amigo de longos longos tempos....
a saudade. e o amor.
(obrigada).
Olá Isabel
Também me soube bem escrever sobre esta poesia ;)
Obrigada eu!
Beijos
T.
Exmos senhores,
Gostaríamos de informar que no mesmo dia da estreia de “Sentido Portátil” (já este sábado|), pelas 18h30 Enrique Vila-Matas estará presente no CCB para “café Perec” - um encontro com escritor.
Para mais informações poderá aceder ao nosso site: www.jumpcut.pt
Exmos senhores,
Gostaríamos de informar que no mesmo dia da estreia de “Sentido Portátil” (já este sábado|), uma adaptação de "história abreviada da literatura portátil" pelas 18h30 Enrique Vila-Matas estará presente no CCB para “café Perec” - um encontro com escritor.
Para mais informações poderá aceder ao nosso site: www.jumpcut.pt
Mas que boa surpresa!! É conhecida, pelo que tenho escrito ao longo dos anos, a minha admiração por este escritor catalão. Sei que o E. Vila-Matas sabe disso ;)
Muito obrigada, Miguel!!
TSC
já é um caminho pra conhecer melhor esta poderosa obra!!
beijos Teresa e obrigado por esta partilha!
Heduardo
Obrigada, Heduardo.
Que boa escrita a do ParadoXos! Magnífica surpresa, portanto ;))
Beijos
Teresa
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