Olhar a invicta com olhos de pássaro, «esperar e ficar de atalaia, como um caçador de átimos; ter os sentidos engatilhados e um bornal vazio onde depositar, com desvelo, o pequeno e delicado momento que nos há-de ficar para sempre». Assim se perenizam momentos em «O Porto: Orgulho e Ressentimento», um livro, antológico, de Manuel Jorge Marmelo. Os textos foram publicados no jornal Público, e outros, breves apontamentos sobre a cidade, escritos no blog do autor, antes «Nariz de Ferro», depois Tatarana.
Como jornalista, o autor dá-nos o olhar minucioso com que perscruta a realidade. Como contista, oferece-nos pequenas narrativas numa escrita depurada, com palavras musicais que tecem sensíveis voos de alma, entretecidas, a muitos passos, numa bela prosa poética, repleta de sinestesias que permitem transmitir sugestões e impressões da realidade captada. Transborda o afecto pela cidade parda, mesmo quando as ruas desatam a mágoa. E aventa-se a razão: «todos os delírios cabem no espaço que coisa nenhuma ocupa. É obrigatório sonhar que estas ruas podem voltar a ser alegres. Um dia.»
Diz o autor que «a subtil magia de certos lugares não dura, às vezes, mais do que um instante. Não que desapareça de facto, pois o fundamental está lá, perenemente. Mas basta que os olhos se distraiam alguns segundos, não mais, para que se desvaneça o imaterial e transitório que opera o milagre de transformar um sitio aprazível numa epifania de maravilhar.». Contra todo o esquecimento, tudo é registado na paleta da observação: gente que passa, gente que se detém num doce vagar, magotes cavaqueando, «um escarro matinal», azáfama e silêncios, rumor de pernas, rumor de penas, vidas de gatos, crianças que «guincham enquanto dão de comer às aves», animais que investigam e debicam migalhas, «frases garatujadas nas paredes do Porto, misteriosas e mágicas», como o misterioso e mágico nevoeiro que ora «povoa a manhã de espantos», ora revela melancolias e desejos de evasão.
Tomando o ar em «golfadas puras», o autor deambula pela cidade, mesmo que o dia amanheça noite, mesmo que o vento cicie nas orelhas «ameaças de chuva», embrenhando-se por becos e vielas, à procura de um «raio de luz que ilumine tudo», ainda que tarde em surgir. Com a doutrina dos sentidos bem afinada, vai revelando a cidade que poucos vêem ou sentem, disciplinado ao método infalível: «caminhar sem rumo. Parar para ver. Fumar um cigarro. Respirar fundo.». Encostar o ouvido aos muros para escutar a palpitação do barro e da pedra. Inventar novos mitos».
Dá-se largas à reinvenção da realidade com o Jardim das Virtudes a rivalizar com o jardim do éden, nos murmúrios de água e erva «perlada de orvalhos», um local que «esmaga e acolhe como um braço apertado e morno», e solta-se a poesia mesmo que – ou talvez por isso mesmo – as «quimeras» sejam sem cabeça. Mira-se Gaia com as suas «casitas de presépio» e navega-se na mansidão preguiçosa do Douro, linha divisória do sagrado e profano, rio que não só separa cidades como deuses: «De um lado Baco, o do vinho, do outro o omnipotente da Bíblia, o das igrejas e dos santos.». Sobe-se ao alto da Torre dos Clérigos, «o gigante de granito» para se ver aquele Porto «minúsculo e rasteiro», e com os braços «abarcar a cidade inteira».
Todavia, também se desce, e o abraço transforma-se num nó que parece apertar a alma e que só a escrita liberta. Comprova-se que mostrar o lado e o reverso é uma consequência da deambulação. Interventivo e crítico, o autor averba misérias da cidade: no largo do Lagarteiro, detém-se junto de famílias, com doentes e crianças, que vivem no interior dos carros, na «miséria, lama e lixo», resultado dos «despejos que a câmara municipal promoveu num conjunto de habitações que ali haviam sido ocupadas»; munido da amplificação que a escrita possibilita, faz sobressair um monte de lixo diante de um hotel de luxo onde «o gato preto famélico e com olho vazado, mergulhou nos dejectos em busca do desjejum»; outrossim, surgem as Fontainhas, quase com «uma pobreza bíblica», «um terreiro de abandono, desolação e lixo, como se a cidade findasse no sítio exacto onde começa a escarpar-se, a empobrecer-se (…), sitio velho, gasto, aviltado pelo tempo, onde os plátanos enfileirados estendem suplicantes braços, retorcidos e nus.».
Um património mundial, de casebres insalubres, refere, onde as pombas são negras –da mesma cor do gato de olho vazado -, «pretas retintas». A técnica de juntar os contrastes para melhor os destacar tem o seu ponto máximo nas elucubrações sobre a Foz, desembocando na rua com nome Alegre onde se atesta o «silêncio furtivo dos dois mundos que aí persistem»: o silêncio dos abastados, símbolo do desprezo, com o cão de guarda a rosnar à passagem de estranhos – a fazer-nos lembrar o Bairro Moderno de Cesário Verde – e o outro silêncio, o rústico, o desprezado, das paredes caiadas, da roupa a secar nas janelas.
A adesão ao mundo dos humildes é assumida na escrita que o reabilita, numa transformação de vitalidade ou projecto de sobrevivência: o arrolar das rolas quebra o silêncio, o ar impregna-se de cheiros da tangerineiras e limoeiros, ostenta-se a vida em «couves tronchudas, num subtil jogo narrativo testemunhado pelas nuvens que «brincam a mostrar e esconder o sol». Na subtileza dos encontros que ocorrem nos «humores da cidade, entre sol e neblina», destaque-se, ainda, as figuras femininas plenas de sensualidade, mesmo que em breves apontamentos como o da «mulher que, feminil, estende um tapete rosado».
Contrapondo-se aos homens da faina – «rudes e mal barbeados que sobem a rampa do cais acartando cabazes de fanecas acabados de chegar do mar» –, surgem surpreendentes figuras femininas, «talvez um pequeno cardume», numa aparição quase mística e repleta de erotismo:
«Com carícias lentas espantavam as algas e os pequenos mariscos que lhes tivessem ficado agarrados aos cabelos; com vigorosos arrepios, como guinadas de carpa, sacudiam a água das escamas. (...) Nestas escadas cantariam, pode-se sonhar à vontade, o seu agudo canto de encantar, semelhando golfinhos, semelhando baleias, semelhando o inaudível sussurro das anémonas e os murmúrios de todos os seres do mar. (…) Apenas confiavam, as sereias, nos marinheiros ébrios e nos contadores de patranhas, com os quais se entregavam, calhando, a fogosas e inverosímeis noites de amor. Metade fêmeas, metade peixes, tinham todo o mel nos lábios e nos bicos dos seios, toda a pimenta nos cabelos longos, todo o colorau e o gengibre todo nas partes humanas do corpo. Ai o viço e o encanto. Abaixo, nas escamas prateadas, temperadas só com sal, ficava o tremor da paixão, o arrepiado amplexo dos brilhos náuticos.».
Evasão – os pássaros do Sul
Embrenhado na cidade, o autor lança um olhar ao largo, numa manifesta evasão. A metáfora do ir /libertar-se surge com os pássaros que passam na rota para o Sul: «havia hoje, ao entardecer, loucos bandos de pássaros voando nos céus da minha cidade. Iam para sul, eu sei. E como entendo a sua fuga!»; «não há sequer pássaros no céu, porém, e os braços das árvores estão nus. O ar não aquece. O corpo encolhe e arrepia-se. Invejo, por isso, todos os bichos da criação que, chegada a invernia, se refugiam no Sul, na metade da terra que é Verão.». Também o vento surge como incentivo à fuga: «o vento tem mil demónios soprando na tarde: assobiam-me, chamam-me, dizem-me que vá.».
O plano irreal irrompe pelo plano real. Engaiolado, detém-se na observação de gaiolas vazias para logo fechar os olhos e, assim, poder «viajar para longe, para o início dos tempos. Estar na cidade e ir ao pedaço de paraíso a que cada homem tem direito – nem que seja por um instante e nada mais.». Ainda neste exemplo percebe-se que a fuga é, todavia, impossível. Essa impossibilidade é o motor da criação destas palavras espraiadas por 142 páginas.
Diz o autor que «tal como a viagem, tal como as cores deste sítio, essa ideia abandonada talvez precise apenas de um raio de sol que a aqueça e dê brilho. Que a faça boa.». Manuel Jorge Marmelo dá-nos uma antologia de luz sobre a sua cidade com que se aquecem bons momentos de leitura.
O Porto: Orgulho e Ressentimento, Manuel Jorge Marmelo, Editora Campo das Letras, Porto, Janeiro 2006
© Teresa Sá Couto
* Dedico este meu texto aos fotógrafos Manuela Vaz Marques e António Amen pelos olhares devotos à cidade do Porto
1 comentário:
Uma bela maneira de ir, atravessar o rio, junto à Serra do Pilar, ver o velho casario, que se estende até ao mar, sem sair de casa. Depois, ir mesmo.
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