«O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig» não é uma mera biografia do fecundo escritor austríaco e investigador do mundo. Escrita por Jean-Jacques Lafaye, e galardoada com o Prix Cazes-Brasserie Lipp 1990, a obra é uma narrativa apaixonante, literariamente poderosa, um documento de época construído com os fios do fulgor, da sede da descoberta, da inquietude, dos abismos secretos e da nostalgia de Stefan Zweig.
«O livro é de uma lucidez e de uma actualidade impressionantes. Vale a pena lê-lo e meditá-lo, com os olhos de hoje», escreve Mário Soares no prefácio desta edição portuguesa, numa referência aos valores humanistas e éticos de Stefan Zweig. «O porvir da nostalgia é a morte escolhida, a morte consentida – e a porta do mistério», escreve o biógrafo nesta obra que ilumina os corredores do enigma, aludindo ao suicídio de Zweig, aos 61 anos, em Petrópolis, Brasil, em 1942.
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Por nove capítulos, enformados em 228 páginas, corre a escrita magnetizante, seguindo a ordem cronológica dos factos, crescimento, amadurecimento e queda do biografado. Coloquial e cúmplice, a narrativa faz, logo nas primeiras páginas, com que o leitor se esqueça que está perante uma biografia, para fazer parte do pulsar intenso dos quadros sociais e psicológicos apresentados. A utilização do Discurso Indirecto Livre propicia ao leitor dialogar intimamente com a personalidade de Stefan Zweig, por intermédio do narrador, estratega de toda a magia.
No original, L’Avenir de La Nostalgie - soberanamente traduzido por Clara d’ Ovar para «O Porvir da Nostalgia», como, aliás, é de excelência toda a tradução - , a obra foi escrita em 1989, e é o primeiro livro de Jean-Jacques Lafaye que, entretanto, reuniu uma obra admirável nas áreas da literatura e da música. Antigo Agente Internacional de Amália Rodrigues, é dele o título «Amália, uma voz no mundo», editado em Portugal pela Quetzal. A sua ligação à alma portuguesa valeu-lhe, ainda, a nomeação de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 2006, pelo então Presidente da República Jorge Sampaio.
No original, L’Avenir de La Nostalgie - soberanamente traduzido por Clara d’ Ovar para «O Porvir da Nostalgia», como, aliás, é de excelência toda a tradução - , a obra foi escrita em 1989, e é o primeiro livro de Jean-Jacques Lafaye que, entretanto, reuniu uma obra admirável nas áreas da literatura e da música. Antigo Agente Internacional de Amália Rodrigues, é dele o título «Amália, uma voz no mundo», editado em Portugal pela Quetzal. A sua ligação à alma portuguesa valeu-lhe, ainda, a nomeação de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 2006, pelo então Presidente da República Jorge Sampaio.
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Personalidade singular num texto notável
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Nascido no seio burguês da sociedade vienense, «desde a mais tenra infância, o pequeno Stefan foi habituado a exprimir-se em inglês, francês, italiano e alemão: ele é o príncipe anónimo de uma família europeia», diz-nos o texto, antecipando a paixão do escritor por uma Europa unida, guiando-nos magistralmente pelo percurso singular de Stefan Zweig, homem e obra, imagem e espelho, confundindo-se ambas. «Judeu, quase não tem consciência de o ser, apenas ouve vagamente falar de certos grupos de jovens nacionalistas anti-semitas. Austríaco, nem ele sabe a que ponto o será, de tal modo o seu horizonte intelectual ultrapassa as fronteiras para abraçar a Europa inteira, sua múltipla terra natal.».
Aos 16 anos era já um «genial poeta» e «são as palavras que lhe oferecem a vida que respira». Apenas «foi três vezes à Universidade: a primeira para se matricular, a segunda para pedir o certificado de assiduidade (!!!) e a terceira para uma agradável conversa com os professores.». Lê muito, e cada vez mais, «escreve novos poemas e não hesita em receber amigos às onze da manhã, em mangas de camisa, despenteado, “navegando” entre montes de livros que cobrem o chão como dantes no seu quarto de criança, os olhos cansados: é que em plena noite uma ideia o acordou e o levou para a mesa de trabalho! Uma boémia activa e fecunda, uma sábia desorganização, um longo e lento desregramento da sua antiga disciplina escolar, tudo o que ele esperava!». Aos 23 anos doutorou-se em filosofia com uma tese sobre Taine. Viaja pela Europa, atinge o mundo todo. Traduz poetas estrangeiros, para aprender com eles; é também ensaísta, dramaturgo, novelista, contista, historiador e biógrafo.
Enquanto o espírito se eleva a altos pensamentos, a alma «enterra-se no negrume de tentações incertas»: «Ao longo da sua vida Zweig manterá uma curiosidade um pouco mórbida pelas formas marginais do sentimento e do desejo»; «O sentimento trágico da existência já está no coração da literatura de Zweig: ele quer sempre interpretar a extraordinária tensão dos nervos, a paixão secreta que dirige a vida e os actos. Esta densidade explosiva que se contenta em aflorar exerce sobre a sua alma uma atracção perigosa, no princípio de um século em que, por duas vezes, ele verá a derrocada.».
A vivência da guerra desmorona-lhe o seu mundo. Crítico do nazismo e regimes fascistas, vê na palavra a salvação: «pelo domínio da palavra, tenho de despertar a consciência dos homens transviados por outras fanfarras. Pela escrita, ilustrar o imperativo da criação que não é mais do que conduzir o género humano para mais humanidade! Mostrar como os chefes enganam os povos nos caminhos do ódio, como as gentes ávidas de conquistas se ligam aos profetas da desgraça, como do caos das paixões pode nascer uma ordem superior, de que maneira uma derrota terrestre contém a promessa da vitória espiritual: é a meta que Zweig se impõe quando começa o seu Jeremias, em pleno 1916. É o seu primeiro combate de homem contra a guerra – em plena guerra.».
Em 1942, Zweig é visitado pela vertigem mórbida, termina o romance O jogador de Xadrez, e joga o xeque-mate da sua existência. «Zweig não foi levado ao suicídio apenas pela guerra mundial, o fantasma de Hitler e a perseguição ao povo judeu. Não; é um homem de sessenta anos que põe fim ao erro de toda uma existência ao serviço de um ideal».
O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig, Jean-Jacques Lafaye; editorial Campo das Letras, Porto, Novembro 2007
Aos 16 anos era já um «genial poeta» e «são as palavras que lhe oferecem a vida que respira». Apenas «foi três vezes à Universidade: a primeira para se matricular, a segunda para pedir o certificado de assiduidade (!!!) e a terceira para uma agradável conversa com os professores.». Lê muito, e cada vez mais, «escreve novos poemas e não hesita em receber amigos às onze da manhã, em mangas de camisa, despenteado, “navegando” entre montes de livros que cobrem o chão como dantes no seu quarto de criança, os olhos cansados: é que em plena noite uma ideia o acordou e o levou para a mesa de trabalho! Uma boémia activa e fecunda, uma sábia desorganização, um longo e lento desregramento da sua antiga disciplina escolar, tudo o que ele esperava!». Aos 23 anos doutorou-se em filosofia com uma tese sobre Taine. Viaja pela Europa, atinge o mundo todo. Traduz poetas estrangeiros, para aprender com eles; é também ensaísta, dramaturgo, novelista, contista, historiador e biógrafo.
Enquanto o espírito se eleva a altos pensamentos, a alma «enterra-se no negrume de tentações incertas»: «Ao longo da sua vida Zweig manterá uma curiosidade um pouco mórbida pelas formas marginais do sentimento e do desejo»; «O sentimento trágico da existência já está no coração da literatura de Zweig: ele quer sempre interpretar a extraordinária tensão dos nervos, a paixão secreta que dirige a vida e os actos. Esta densidade explosiva que se contenta em aflorar exerce sobre a sua alma uma atracção perigosa, no princípio de um século em que, por duas vezes, ele verá a derrocada.».
A vivência da guerra desmorona-lhe o seu mundo. Crítico do nazismo e regimes fascistas, vê na palavra a salvação: «pelo domínio da palavra, tenho de despertar a consciência dos homens transviados por outras fanfarras. Pela escrita, ilustrar o imperativo da criação que não é mais do que conduzir o género humano para mais humanidade! Mostrar como os chefes enganam os povos nos caminhos do ódio, como as gentes ávidas de conquistas se ligam aos profetas da desgraça, como do caos das paixões pode nascer uma ordem superior, de que maneira uma derrota terrestre contém a promessa da vitória espiritual: é a meta que Zweig se impõe quando começa o seu Jeremias, em pleno 1916. É o seu primeiro combate de homem contra a guerra – em plena guerra.».
Em 1942, Zweig é visitado pela vertigem mórbida, termina o romance O jogador de Xadrez, e joga o xeque-mate da sua existência. «Zweig não foi levado ao suicídio apenas pela guerra mundial, o fantasma de Hitler e a perseguição ao povo judeu. Não; é um homem de sessenta anos que põe fim ao erro de toda uma existência ao serviço de um ideal».
O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig, Jean-Jacques Lafaye; editorial Campo das Letras, Porto, Novembro 2007
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© Teresa Sá Couto
8 comentários:
Os erros pagam-se caro?!
curioso, Rui, que a propósito do suicídio enquanto libertação e emenda de erro, tenho em mãos um livro que acabou de chegar às livrarias, um ensaio estupendo: "Atentar contra si", Jean Améry, Assírio&Alvim, 2009.
Um dia destes trago-o para aqui. ;)
Olá Teresa. Long time, no seeing. De vez em quando passo por aqui, e penso sempre que temos que tomar um café. Vim à procura de ideias para o Natal. Vou comprar o Blackpot porque adoro policiais. E depois passo ao Bernardo, que também gosta.
Beijooo :)
Teresa Carracha
Olá, Teresa :)
E com "Blackpot" fica completa a obra Dennis McShade.
Vou colocar aqui mais sugestões até ao Natal...
Beijos
T.
além de ter sido a responsável pela revisão e concepção gráfica, escrevi um texto para as badanas de «Confusão de Sentimentos», uma belíssima antologia de contos de Stefan Zweig, e depois o mesmo texto saiu também nas badanas de «O Combate com o Demónio», que reúne as biografias de Hölderlin, Kleist e Nietzsche; aí, eu levantava a hipótese de ele, Zweig, e a sua mulher terem sido suicidados. li muita coisa acerca do assunto, incluindo o relatório da polícia com as fotografias do processo.
entre uma hipótese e outra, porém, e as teorias do erro e sua emenda, fica a incontornável emoção que rompe as linhas de Zweig como coisa palpável e rente a nós.
por curiosidade, deixo aqui o tal texto de badana:
«"Nasci em 1881, num grande e poderoso império, a monarquia dos Habsburgo, mas que já não é possível encontrar no mapa: foi completamente apagado. Cresci em Viena, a metrópole duas vezes milenar, capital de muitas nações, e fui obrigado a fugir como um criminoso antes de ela ter sido rebaixada à condição de província alemã" (in "Die Welt von Gestern", 1942).
Stefan Zweig, o "ami blessé", como é denominado pela biógrafa Dominique Bona, deambulou um pouco por todo o mundo, por esse mundo onde perdera o seu lugar e a sua utopia, apeando-se finalmente no Brasil, em pleno Carnaval dos excessos e do esquecimento, e, tomado por um destino cujo caminho o angustiava tanto como a Europa na dilaceração da guerra, ter-se-á suicidado, ou foi suicidado, a par da sua esposa, Lotte, em 1942. Entretanto, escreveu centenas de poemas na juventude e muitas obras em prosa, do teatro ao romance, destacando-se as biografias, nas quais perpassa o combate que travou durante toda a vida para conciliar a luz e a obscuridade.»
beijos mil, Teresa, da
Carla da Silva Pereira
Magnífico.
E vamos ter muito de conversar; é que vamos mesmo, e não só por causa assunto e dos títulos que aqui referencia, mas por outro que "descobri" com a sua iniludível e talentosa assinatura. Logo lhe conto :)
Beijos
T.
Olá amiga Teresa Sá Couto
Deixei-lhe um comentário na Orgia a propósito do Blackpot.
A propósito de Zweig apenas um comentário....já não era sem tempo que um autor como Zweig,passasse da condição de autor menor ao lugar de topo que ele definitivamente merece.
Um abraço
Henrique
H.N.
Olá Henrique
Obrigada por me avisar sobre o seu comentário na OL (ao qual acabei de responder) já que, como não sou notificada, às vezes "passam-me" :)
Zweig foi um grande escritor e também ele anda muito esquecido. Esta biografia, além de ser excelente, vem em jeito de lembrete, ensejo que eu tinha de aproveitar :)
Grande abraço
T.
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