quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Centenário de Adolfo Casais Monteiro

Pouco se fala dele, mas deixou marcas raras e iniludíveis na cultura portuguesa. Salazar proibiu qualquer referência ao seu nome e parece que a influência do ditador agiu sobre as memórias. Adolfo Casais Monteiro nasceu no Porto a 4 de Julho de 1908 e faleceu longe da pátria, no Brasil, a 24 de Julho de 1972, para onde emigrou em 1954 e donde jamais voltou. Poeta e ensaísta de excelência, foi uma das vozes do Modernismo português, fez parte da direcção da Águia (1929), da Presença (1931) e do Mundo Literário (1946). Juntamente com os amigos Fernando Pessoa, José Régio, João Gaspar Simões, Casais Monteiro foi nome grande das letras portuguesas do século XX.

Nesta homenagem a Adolfo Casais Monteiro, relembro alguns dos seus poemas impuros que se tornam puros, porque, como ele disse, são barro humano. Barro cristalino, de tempos incertos, em constante interpelação da vida: «Não canses…/sabes que a vida /é feita de retalhos: /riso e lágrimas de mistura…/Seu preço /talvez esteja nisso mesmo».

Em notas para o leitor, mon semblable, mon frére, como assim o designou, no prefácio à edição de Versos, em 1944, Adolfo Casais Monteiro fala da dificuldade de se criar em isolamento, não só dele, mas do grupo Presença contra o «mundo inteiro». Refere-se à animosidade com que os seus versos são recebidos, embora constate que já há «quem os entenda». Destrinçando a sua actividade de Ensaísta e Poeta, e respondendo assim aos que o acusam de «ser um» quando escreve versos e «outro» quando escreve ensaios ou críticas, Casais Monteiro: «o ensaísta está voltado para o mundo: pretende fazer compreender, ou fazer amar. O poeta (…) está sozinho. (…) Os meus poemas nasceram quase sempre dum estado de insatisfação, de descontentamento, de desequilíbrio. São quase todos a voz da sombra, da melancolia, do desespero, da ansiedade; ou então, de estados ou momentos de exaltação positiva».

E os seus poemas desnudam-no; neles encontra-se a explicação do ser poeta, menino e velho, exaltado e desesperado, sempre deslumbrado e tendo no verso o pão:

Poeta: uma criança em face do papel. /Poema: os jogos inocentes, /invenções de menino aborrecido e só. /A pena joga com palavras ocas, /atira-as ao ar a ver se ganha o jogo; /os dados caem: são o poema. Ganhou.

Um poeta: um velho em frente da desgraça. /Um pobre mutilado, /Deram-lhe uma alma, mas /tudo o mais lhe tiraram: para quê? /Poeta: o que canta para sofrer; /O que sofre para cantar; /e afinal não se sabe se foi o ovo que nasceu da galinha /ou a galinha que nasceu do ovo.

A Palavra Impossível do Exílio

Vítor Hugo disse que «O exílio é uma espécie de longa insónia». Perseguido por Salazar, Casais Monteiro revela a Confusão (livro de 1929) do tempo fragmentário que encontra na palavra a voz do desencanto: «Pelos caminhos incertos /dum país de sonho e de bruma /vou desvairando à procura /de qualquer coisa que sinto /fugir-me por entre os dedos. /Não sei bem o que persigo / – e que importa isso à vida? – /o essencial é apenas /perseguir alguma coisa /para não ser absurdo /o tanto tempo perdido /a divagar neste mundo».

Em Sempre e sem fim (1937) diz-se o Fio da Meada da vida dobadoira: «à roda à roda sem parar /eu o fio da meada /cujo fim era dar voltas /o fio que se enrolava /e que assim a andar a andar /sem descanso nem sossego /voltava sempre a passar /a passar onde passara. /Mas o fio da meada /ficou preso nos teus dedos /agora desapareceu /o ritmo da dobadoira /e tem apenas um jeito: /enrolar-se no teu corpo /envolver a tua vida /e sem fim sem fim sem fim /enredar-te em suas voltas…».

Preso várias vezes, manifesta a sua revolta em «Canto da Nossa Agonia» (1942) e «Europa» (1946). Neste último, o autor cujos «dedos /quase por hábito» se estendem «para o papel, /num desejo /de confessar sei lá o quê» mostra, no vibrante vocativo «Europa, ó mundo a criar!», a conjuntura e o estertor da sua existência, em busca, todavia, da cumplicidade do leitor:

«Deixai-me chorar – e chorai! /As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, / de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição, /e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama, /por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio, /por um segundo seremos os mortos e os torturados, /os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados, /seremos a terra podre de tanto cadáver, /seremos o sangue das árvores, /o ventre doloroso das casas saqueadas, /sim, por um momento seremos a dor de tudo isto».

Em 1954, ano em que parte para o exílio do Brasil, escreve «Voo sem pássaro dentro e dá conta das portas que o fecham e da negação da voz: «Abram!» disse a voz. /«queres sair ou entrar?» ouviu. /A voz ficou suspensa. Sair ou entrar? /«Sei só que há portas…»disse. /«Sim, portas fechadas para todos os lados; /se entrares, ficas fechado do lado de dentro, /se saíres ficas fechado do lado de fora. Escolhe!» /Mas a voz nunca mais.».

A alquimia do vivido e a procura da luz…

António Ramos Rosa refere que apesar da poética de Casais Monteiro ser traduzida «por palavras como bruma, destroços, incertos, vão, gelado, etc.», o «prato da balança» pende para aspectos menos negativos como o «apelo à luz, à vida (…)». Como efeito, sendo esta uma poesia com «uma nova dimensão para o vivido», como disse Óscar Lopes, as perdas parecem transmutar-se para o amor, para o «que não se tem» e, por isso mesmo «se sabe já desejar». Em 1961 Casais Monteiro edita o livro Estrangeiro Definitivo e a mão que esculpe os versos de abandono deixa-se iluminar pela possibilidade do amor:

Quem saberá ler o futuro /nos olhos transparentes do amor? /Quem saberá arder até ao fundo /na chama última do amor? /Quem saberá perder o nada e ganhar tudo /por amor?

Toda a gente é um exército de salvação! /Vêm com a sua charanga salvar-nos de nós próprios, /amigos, amantes, parentes, para não falar nas esposas. /Toda a gente nos quer dar esmola. /Só ninguém nos quer nus, /só ninguém percebe que uma só coisa nos podem dar realmente, /é olharem para a nossa alma nua e dizer: /- Está bem, assim seja. /Então seria o amor.

Casais Monteiro diz que «Noite aberta aos quatro ventos», livro com poemas de 1943 a 1959, é a expressão fiel de si próprio, acrescentando: «reparo que a palavra Aberta se encontra no seu título com mais sentido do que poderia supor quando o adoptei». Desse livro reproduzo o poema fricativo do cisma do vento, cunho de toda a sua existência:

Vem Vento, Varre

Vem vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.
Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.
Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.
Vem vento, varre!

© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Anónimo disse...

Vem vento e varre .... os vendedores de ilusões e falsos profetas da bem aventurança
Vem ventos e varre ....os que todos os dias se valem de falsas e vãs promessas em nome do povo...
Vem ventos e varre...aqueles que em nome desse povo nada fazem pelo povo....
EO

Teresa disse...

Pois é, Emanuel: a energia das palavras de ACM contamina-nos!!

Obrigada.
Bjos
TSC