quinta-feira, 23 de outubro de 2008

«O Lavagante» de José Cardoso Pires - Pura filigrana literária

Dez anos depois da sua morte, a completarem-se no dia 26 de Outubro, José Cardoso Pires regressou às livrarias para nos mostrar o quanto nos faz falta. Lavagante - encontro desabitado é um texto inédito do nosso escritor de sempre e é com ele que Nelson de Matos, que foi editor de Cardoso Pires durante quase 30 anos, iniciou a actividade da sua nova editora. Uma homenagem ao amigo, disse o editor; uma homenagem à saudade dos leitores, acrescento eu.

A surpresa deste texto póstumo, lançado no início do ano, valeu-lhe esgotar, num ápice, a sua primeira edição de 3000 exemplares. A surpresa continua no interior, pois foi a ela que Cardoso Pires nos habituou: o ardil narrativo, o desenho das personagens, o carácter impressivo dos ambientes e a prosa de pura filigrana avassalam o leitor enredando-o nas breves, mas imortais páginas desta preciosa fábula que retrata o Portugal medroso, censurado e asfixiado dos anos sessenta. Sem dúvida, o acontecimento editorial do ano.

José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925 em São João do Peso, Vila de Rei, Castelo Branco. No dia 26 de Outubro de 1998, em Lisboa, o escritor de O Delfim e de De Profundis, Valsa Lenta, não conseguiu vencer a senhora da gadanha e, após um acidente vascular cerebral era-lhe decretada a morte cerebral. Considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, Cardoso Pires deixou-nos uma obra extraordinária em romances, contos e dramaturgia.

Segundo as Edições Nélson de Matos, o texto foi editado, numa versão reduzida, em 1963 na revista O Tempo e o Modo com o título "Um lavagante e outros exemplares", com a menção de que se tratava de um capítulo do próximo romance de Cardoso Pires, e terá sido concluído antes da edição de O Delfim (1968). O texto agora publicado será a mais completa das três versões dactilografadas.

Lavagante, Safio e «outros bichos»

A acção inicia-se no Lanterna, «o melhor bar de praia» onde estão o narrador, um barman e um jornalista «em destroços agarrado ao balcão do bar, da geração reformada que não conheceu a paz nem a guerra», a geração 44-45, «atormentado» e de «sonhos frustrados», sentindo a culpa da mão viciada que «escreve com medo»:
«Viciámo-nos. Agora temos a Censura a escrever por nós. E amanhã? Quem sabe escrever amanhã, quando a Censura acabar?».

A chegada de um casal, saído de um Mercedes 190 – a «mulher cabra» e um fascista, o «engenheiro-sapo» – introduz a história de Daniel – jovem médico oposicionista do regime – e Cecília – jovem estudante de Arquitectura que o traiu entregando-o à PIDE, o que valeu ao jovem 52 dias de prisão no Aljube, sem perguntas, simplesmente para «dar-lhe um golpe no orgulho». É também este o ensejo para a metáfora do Lavagante, que desata a reflexão sobre a autofagia:
«o lavagante é principalmente um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios. Contei-lhe como ele serve o safio que está nas tocas submersas levando-lhe comida a todas as horas, e como a sua existência anda presa a essa serpente estúpida de grandes sonos, vendo-a engordar, engordar, até saber que a tem bloqueada, incapaz de sair do buraco porque o corpo cresceu de mais, enovelou-se, e não cabe na abertura por onde podia libertar-se. “‘Nesse momento, fica sabendo, o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo.”».

Extraordinariamente construída, Cecília é o lavagante, calculista, «fria e soberana», de «corpo vivaz», «cabra mil vezes cabra», diz o jornalista «em desespero», amigo de Daniel.Mas se o lavagante é Cecília, também Daniel «executara as diversas fases dum jogo perigoso»: «o teu amigo quis catequizar a rapariga e o tiro saiu-lhe pela culatra. No fim de contas, é a velha costela de Pigmaleao que todos nós temos… (…) Talvez fosse uma espécie superior de lavagante…Quem sabe?Se formos a ver bem, talvez o Pigmaleão tenha qualquer coisa de lavagante. Ele também aperfeiçoava a presa, não é verdade? Também a acomodava aos seus desejos. ».

Por outro lado, a Cecília arrependida origina uma troca de papéis: o mesmo Sapo que o terá prendido, pela mão de Galos Velhos, operacionais da PIDE, o terá libertado por interferência de Cecília: «”O Safio”, digo de mim para mim. “Neste caso foi o safio que se libertou pela mão do lavagante. Questão de táctica, pura questão de táctica. Para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar outra. Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também. Se sabe!”».

Nota:

O CCB assinala, no dia 26 de Outubro, os dez anos da morte do escritor, com o programa titulado José Cardoso Pires, de Mão Pensada, com entrada livre. Nas actividades contam-se leituras de excertos da sua obra, entre as 14:30 e as 16:15, na sala Almada Negreiros, com abertura de António Mega Ferreira, presidente do conselho de administração do CCB, e as participações de Inês Pedrosa, José Eduardo Agualusa, Mário de Carvalho e Lídia Jorge; uma conferência intitulada Memória e Auto-Ficção, às 17:15, proferida por João Lobo Antunes, e às 18:30 a projecção do filme "O Delfim", realizado por Fernando Lopes em 2002, com argumento de Vasco Pulido Valente e interpretação de Rogério Samora e Alexandra Lencastre.
No átrio da sala Almada Negreiros, estará ainda patente uma exposição com as ilustrações que João Abel Manta fez para a sátira de José Cardoso Pires "O Dinossauro Excelentíssimo" (1972).

© Teresa Sá Couto

7 comentários:

Anónimo disse...

Escrita no osso
Valia um, dois, três nóbeis..

Best
Macro

Teresa disse...

Pelos menos, Rui, Cardoso Pires devia ser mais lido em Portugal. Mas a grande maioria dos, ainda poucos portugueses, que lêm e sabem ler, optam pela literatura estrangeira. Preconceito ou comprovativo do nosso complexo de inferioridade? Um complexo destituído de fundamento, pois na escrita temos dos maiores autores!

Bjo
TSC

Carlos Gil disse...

sem uso de palavras inúteis, JCP foi dos maiores escritores portugueses da última metade do finado. não tenho conhecimento académico para afirmá-lo/prová-lo e falo como leitor adicto. podia referir outros, mas o post fala dele e por isso por aqui me fico. em boa companhia para os silêncios, que não lhes conheço melhor que um bom livro.

Teresa disse...

Plenamente de acordo, Carlos!
Obrigada pela visita.
Vá dizendo coisas (também sobre o livro que tem no blogue ;))
Um abraço
TSC

Claudia Sousa Dias disse...

estou com água na boca...tenho na minha estante em fila de espera...

tb tenho mais seis textos para publicar...

CSD

Teresa disse...

Não tem o fulgor dos seus romances, mas matou a saudade de JCP. É uma novela magnífica que se lê num instante e volta a ler-se com prazer enorme. Vais adorar, Cláudia!

Beijo
TSC

Carlos Gil disse...

(Teresa, desculpa-me peloa traso na resposta - que não no regresso que tenho vindo ler-te mas não voltara a mergulhar nesta cx de comentários)
do Xicumebo: o livrito é uma colecção de memórias do meu adolescer enquanto um País nascia. e, embora no mote haja um piscar d'olho (natural?) à irreverência dos tempos e da idade, um beijo longo a águas e areias índicas que toneavam uma cidade linda, se espremido caem gotas salgadas tais as que me molharam as faces e aindo hoje sinto nos lábios quando (lhe/me) escrevo. sim, é catártico.

obrigado pela tua atenção comigo

carlos