«Myra» de Maria Velho da Costa acaba de ser galardoado com o Prémio Pen Clube de ficção. Um justíssimo galardão para o portentoso romance que há dias recebeu também o Prémio Máxima de literatura. Segue-se o meu texto editado no site Orgia Literária.
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Este mundo é íngreme. Como tal está cheio de criaturas íngremes. Nosso mister é achatá-lo. É com estas palavras de Luís de Sousa Costa que abre o novo romance Myra de Maria Velho da Costa, e são elas que incitam esta minha leitura.
Achatar o mundo remete-nos para o compromisso que a obra literária estabelece com o acto da leitura: forma de pensar o caos e de inquirição dos abismos humanos, lugar de encontro onde o desconhecido se possa fazer conhecido, permitindo ao leitor confrontar-se com ele mesmo e pensar os modos pelos quais o tormento faz parte da existência. Um compromisso que tem no romance Myra a mais elevada celebração.
Programa narrativo de procura, Myra traz-nos a história de uma adolescente imigrante russa, cujo nome faz título do romance, «proibida de existir», «roubada de poder ser», em fuga dos que a querem seviciar, e da sua amizade com Rambo, um cão de luta, também ele estropiado como ela, ele, o prolongamento dela, a sua alma gémea. Myra foge «contra o vento», por uma praia deserta, em direcção ao mar, com frio e com medo, foge da espécie de bordel da Caparica onde a agrilhoam, foge para Sul, como que em busca do sonho que deixou no Leste. Foge sob um «céu baixo e muito escuro», sob a chuva que lhe bate na cara «como chorar sem gritos».
E Myra nunca mais pára de fugir, colando-se o leitor à sua dor, também ele inquieto, na deambulação, na deslocação física que dá visibilidade à sua angústia, metáfora da deslocação existencial. Impressivas, como se trabalhadas com lâminas de faca, as oito pinturas de Ilda David’, incluídas no interior do livro, constituem mais um caderno para desassossego do leitor. Na capa, também de Ilda David’, o arrebatamento negro e cinza de um laço indestrutível.
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Se o assombro meteorológico, do início da narrativa, impele Myra à anulação – se ela entrasse no mar, «se corresse por ali adentro ninguém daria por ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro» – ela procura, todavia, um barracão que a proteja e é lá que encontra Rambo, maltratado depois de uma luta, com pêlo a espirrar água e sangue. O reconhecimento é imediato: «o sangue puxa sangue», tinham sido feitos um para o outro. É assim que o plano narrativo encontra o carácter e dimensão trágicos de dois seres extraviados, e explora-o, enquanto seres enleados em regras predeterminadas e consabidas, pelas 221 páginas de inquietação do leitor.
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Myra, sem direitos de plena cidadania – motivo da identidade como problema –, e Rambo, sem direitos de escolha, surgem-nos como duas formas de pensar o caos. Ela sempre com medo: «Myra não tem remorsos nem culpa. Tem medo, porque os fantasmas assombram quando querem.». Rambo, sempre vigil, «enlaçado à mão dela pela trela amante», com os sentidos nela, ladra à beira do precipício «onde ela parece siderada, farta de tentar, a tentação», e puxa-a. Na deriva, ele vai alertando-a: «tem cuidado, olha a ilusão», «Não te fies do céu. (…) Atém-te à sombra, mesmo escassa, enquanto a tiveres agarrada aos pés».
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Sem direito a uma identidade, ambos vão mudando de nome consoante os locais e «os outros humanos» que vão conhecendo. Os dois, ou como no reforço dado pelo texto, «ambos os dois», sempre na orla: na orla do mar, na orla da serra, na orla do arvoredo, na orla das sombras, na orla da existência. Concorre, ainda, para o carácter trágico da visão humana, o motivo da procura sempre minada que não só adia o encontro como reforça o desencontro, mostrando que o encontro sempre foi impossível. Mesmo o tempo da felicidade redonda e perfeita, aparentemente paradoxal, que Myra passa ao lado de Gabriel Rolando (um jovem rico mas também marcado com a tragédia), tem na narrativa o tempo do onírico a acentuar o fracasso de um projecto humano, como se fosse necessário conhecer a felicidade para se saber que não se tem direito a ela.
«Os milagres são como o vento, e o vento sopra onde quer», diz-nos o texto. Quando o vento lhes nega o encontro com o Sul e os agrilhoa no percurso para o Norte, intui-se a tragédia: Myra e Rambo suicidam-se, decidindo ir juntos para o «reino dos céus».
Construído em torno da noção de voz, este romance da autora de Missa In Albis evidencia, também, o carácter dialogal de todo o discurso humano. Myra fala para o cão e pensa para o cão , o cão responde-lhe e aquiesce aos seus pensamentos. Ela não quer ouvir vozes, porque quer seguir em frente, mas não pára de as ouvir. São as vozes das raízes, vindas de longe, murmúrios do mundo que o homem escuta dentro de si e que nunca consegue calar. Myra ouve a voz da família, e benze-se “à russa” no encalço de uma força metafísica, que lhe dá, não conforto, mas ansiedade. Myra é, pois, o lugar onde repercutem as várias vozes do mundo e são elas que dão ao romance uma rima interna fortíssima.
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Narrativa sobre a noite humana e a luz da amizade que existe nessa noite, Myra faz-nos reflectir sobre as forças agitadas que estão sob a superfície, que o homem é incapaz de conter. Programa de procura, Myra é inegavelmente um lugar de encontro com a inquietação e, por isso, com a melhor literatura.
este texto foi editado em 19.02.09 no site Orgia Literária
© Teresa Sá Couto
6 comentários:
Teresa, parabéns pelo modo como lê e como escreve sobre o que lê. Escreveu as palavras que eu gostava de ter escrito.
Obrigada. Mas eu gostava de saber quem é, anónimo ;)
Um abraço
Maria Velho da Costa é a grande, a melhor prosadora da literatura nacional. Se recebeu mais um prémio, sem dúvida que o merece.
Fico contente por isso.
Gostei de a ler...tenho de obter mais este livro!
É um livro imperdível, Vitor, mas logo me dirá! ;)
o melhor romance que li em 2012.Nunca farei um texto tão belo quanto este que aqui postaste! Muito parabéns. Bjo
csd
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