quarta-feira, 25 de março de 2009

As mãos que nos dá Manuel Gusmão

«Corta a minha mão e escreve com ela um poema que seja teu», escreveu o poeta Manuel Gusmão, no livro «Migrações do Fogo», livro que lhe deu o «Prémio Literário D. Diniz 2004». No ano passado, o poeta trouxe-nos «A Terceira Mão», a mão com que o leitor manufactura a sua alma, guiado por uma poesia única e enorme, que perscruta e rasga o caminho interior mais sombrio, poesia de ecos e labirintos humanos, que desvela o homem como «o migrante de si mesmo»: a mão «que te empurra / para território desconhecido e aquela / que te guia em terra de ninguém: no pavor /que abala a noite do teu corpo, /que abalado fora antes pela alegria».

Juntamente com esta recolha poética, e também com a chancela da Editorial Caminho, chamo a atenção para o «Poesia e Arte – A Arte da Poesia», livro de homenagem ao poeta, e que colige textos vários, entre entrevistas, poemas e ensaios, uma ajuda preciosa para se entender a poesia de Manuel Gusmão. O trabalho de antologia coube a Helena Carvalhão Buescu e Kelly Basílio, nomes reconhecidos pelo trabalho notável na organização de outros compêndios do género que tenho vindo a aconselhar, pela sua qualidade e valor inestimável para a cultura portuguesa. Entre os autores que colaboraram neste livro de homenagem ao poeta e ensaísta nascido em Évora em 1945, figuram Fernando Guerreiro, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Maria Andresen Sousa Tavares, Maria Velho da Costa, Nuno Júdice, Silvina Rodrigues Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, Vasco Graça Moura e Vítor Aguiar e Silva.

A Poesia da Inquietação

Segundo o próprio autor, a sua poesia está repleta de «traços muito negros, no modo como são abordados o mundo e os afectos». Poesia negra, sombria, «intermitências da sombra e do coração», ignescente e inquietantemente verdadeira, assim patente em «Migrações do Fogo»: «Por terra muito antiga – e contudo chão recente / filha de um fogo que esfriou e a abriu nas águas, / andámos hoje»; «Depois atirados para um canto / desta ou da outra casa, há esses corpos que não / se entendem: repetem-se mas não se ajustam.»; «com o comando vais mudando as imagens / à espera que elas próprias te digam o que ali procuras. / No ecrã da insónia, as imagens são labaredas claras / deitando as sombras sobre a mesa do trabalho que / sonha o filme. O pesadelo bate com a noite nas janelas».

Estas "Migrações" fazem-nos leitores do eco de um eco: o poema que «traz consigo a voz que ele próprio / escreveu: essa voz emprestada / que um dia te inventou para o amor: / a razão enquanto ardia, a única razão.». É do poeta o dom da palavra e do incentivo que rasga o caminho mais sombrio da alma. Cabe ao poeta a dor desse desbravar:«Sem outras qualidades que não a de se ter perdido / e a de perdendo-se continuar, o migrante dança.(…) Enquanto tu lês (...)Tu vês: o migrante beija a morte na boca.».

A mão do mestre

As mãos talham a memória. «As mãos lembram-se: recordam o coração». Com as mãos ligamo-nos ao mundo e reinventamo-lo, diz-nos Manuel Gusmão, enquanto nos ensina a perscrutar as sensações que elas recolhem, os gestos que elas executam, autobiografando as suas próprias mãos:

Repetes, recapitulas, recuperas esse gesto antigo:
Estender as mãos em frente –
não para a memória mas para a vida,
não para o sonho mas para a invenção
num gesto ou numa teia de gestos quase
automáticos,
quase pensativos;
Ver pelas mãos o halo da lua que alucina –
Poisar as mãos na madeira da mesa ou
na pedra do parapeito ou no pescoço alto
por onde subia o canto –
E de súbito há uma coisa que descobres
onde a não esperavas: quando escrevendo o «Soneto»
de Cantata ela calculava o peso que deveriam ter
as palavras para poderem voar;
quando o poema era levantar a torre do meu canto
e recriar o mundo pedra a pedra
.

O poema que troca de mão

Já sobre «Migrações do Fogo», noutras ocasiões, referi que a poesia de Manuel Gusmão faz-se com gestos primordiais, «Por terra muito antiga – e contudo chão recente», convocando o leitor para o seu interior de vozes, corpos outros que desaguaram no corpo de agora, ecos e espelhos para encontrar o seu reflexo, a sua inquietação, e o poema troca de alma, troca de mão, sempre à procura do sítio para habitar: «Que podem os versos saber /desse sítio que o papel não chega para estancar.»

«Quem lê é levado pela mão nesse “movimento” que os textos pedem», escreve Paula Morão no texto «A inquietante arte de escrever», compreendido no livro de Homenagem; «Entendemos agora que / quando cruelmente triunfamos / é fugaz o furor voraz dos músculos / e por isso terror e alegria, então / e hoje, nos trespassam», escreve, por sua vez Gastão Cruz, que também recolheu os ecos das palavras de Manuel Gusmão. «Onde está o mundo quando não / estamos a olhar?», qual a sua vibração, que nos enreda, fugazes e transitórios, na «arquitectura do mundo», no movimento infinito das coisas? O poeta que nos desafia dá-nos a hipótese da terceira mão, do desequilíbrio e do desassossego, mas também a do amparo, pela luz com que nos alumia:
(…)
Quando não estás a olhar é o mundo
que te olha. Nunca saberás o que vê.
Obscuramente imaginas que testemunhará
por ti, mas ignoras de todo – e que importa? –

onde, a que propósito e perante quem.


Manuel Gusmão, Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lx 2004

Manuel Gusmão, A Terceira Mão ; Editorial Caminho, Lisboa, 2008

Poesia e Arte – A Arte da Poesia, Homenagem a Manuel Gusmão, vários autores; Editorial Caminho, Lisboa, 2008

© Teresa Sá Couto

6 comentários:

anad disse...

passei por aqui e gostei.
Anad

anad disse...

passei por aqui e gostei.
Anad

Teresa disse...

Obrigada pela visita.
Um abraço
Teresa Sá Couto

panaceia disse...

Gostei muito...

panaceia disse...

Fui pesquisar Manuel Gusmão e encontrei este excelente blog. Gostei muito.

Lia

Teresa disse...

Bem-vinda, Lia. :)
T.