sábado, 14 de março de 2009

A Nação dos Chefes e dos Auxiliares

No dia que se seguiu às eleições, o senhor kraus, que escrevia crónicas num jornal, apontou no seu caderno: «No contacto com a população mais simples, alguns políticos dão beijos na cara como quem do cais diz adeus ao barco que parte para nunca mais voltar».

Assim se vê a oleada engrenagem dos Senhores do Bairro, de Gonçalo M Tavares, agora ainda mais afinada pela sátira aos tempos que correm – «para trás?, para o lado?». Perto da roda-viva de processos eleitorais, a narrativa d`«O Senhor Kraus», tendo a actuação política como uma brincadeira de crianças, purga-nos a alma: «Quando um político nos fala do céu, e aponta o dedo para o alto dizendo, vêem?, é aí, nesse momento, que devemos olhar atentamente para os objectos que ele guarda na cave.».

Os Chefes da Nação e o seu séquito de Auxiliares subservientes, deslumbrados com os métodos com que se convencem eleitores, constroem o teatro cómico que é a relação dos políticos com a população, onde todos somos rodas dentadas do burlesco. Directamente do olhar arguto, divulgado com humor original, de um autor que continua a surpreender.

Sobre o processo eleitoral, escreve o senhor Kraus: «Depois de qualquer eleição a sensação dos políticos – quer tenham perdido quer tenham ganho – é a de que o povo mais profundo acaba de entrar num comboio, dirigindo-se, compactamente, para uma terra distante. Esse povo voltará apenas, no mesmo comboio, nas semanas que antecedem a eleição seguinte. Esse intervalo temporal é indispensável para que o politico tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou indiferença em nova paixão genuína.».

Os Chefes construídos pelo senhor Kraus não têm nomes. Nem os Auxiliares. Nem «Os Outros», os eleitores, os que não são fascinantes para os primeiros e segundos, sim Necessários. Não têm nomes, por ser dispensável. Reconhecem-se os das duas primeiras categorias e, como a uns seguem-se sempre outros, e sendo todos tão iguais, dar-se-lhes um nome é supérfluo. Talvez isso explique a dificuldade que a maioria dos portugueses tem em saber o nome, por exemplo, dos ministros da Nação. Sabem que são ministros, como eram os antecessores e os que se lhes seguirão. E isso basta-lhes. Quanto aos últimos, «Os Outros», conservam o seu anonimato original na Nação de Chefes e Auxiliares. É nesta trilogia de “anónimos identificáveis” que se joga o jogo da reflexão e da sátira sobre a política que se faz, e se estende o contentamento do leitor.

Como os chefes lidam com o país

O Chefe aparece com aborrecimentos que «vinham sempre lá do fundo», quase como um decreto-lei. Defendia o instinto que nascia no estômago e subia até a garganta…melhor, ao vocabulário, conferindo-lhe uma força invulgar: «não é inteligência, que ela não é capaz de entender os meus discursos. Eu falo à população!». População que ele não conhecia. Os Auxiliares zelosos iam oferecendo ao Chefe mapas do país «para ele deixar de confundir tudo com o seu contrário». Porém, o Chefe era distraído, e ora perdia-os ora «punha-os debaixo de uma garrafa de vinho, para não sujar a mesa» ora assoava-se a eles, como lenço de socorro à constipação.

Descartando os mapas, o Chefe defendia que «o mapa mais real do país era o aparelho de televisão que tinha em casa». Com o país no botão da TV, era imprescindível ter todos os canais ligados. Enquanto ia assim “aprofundando” o conhecimento do país, um Auxiliarzinho alertava-o para a importância de saber geografia: «Se souber geografia as suas ordens podem ser exaustivas, ao metro quadrado» e assim não deixar nada «fora do benfazejo alcance das suas medidas politicas». Uma luz para o Chefe que nunca tinha pensado naquilo. As inaugurações onde se inaugura a figura do político, entenda-se, se inaugura o invisível, é outra boa estratégia do Chefe: «Inaugurar e ser a coisa inaugurada ao mesmo tempo» e depois fazer passar a mensagem: «tudo o que não se vê fomos nós que fizemos (…) porque em relação àquilo que se vê há sempre contestações».

Também o movimento e a mudança são imprescindíveis a quem quer ser Chefe. Por isso, ele mandou os seus Auxiliares sentarem-se numa cadeira e bater os pés no chão até às eleições. Para se consolidar a mudança, o Chefe seguiu outro «conceito estratégico»: pediu aos auxiliares que trocassem de lugares nas cadeiras a cada hora ou hora e meia, alternando, vice-versa, «sempre a bater com os pés no chão».

Como estratégia para estas estratégias dos políticos, o senhor Kraus adverte: «todo o número exacto atirado aos olhos da população insegura e distraída produz cegueira. Porém, se quando esse número for atirado nos fingirmos distraídos, imitar certos actores cómicos do cinema mudo, e aproveitar esse exacto instante para apertar os cordões dos sapatos», o número passa-nos por cima e «já não nos afectará a visão. (…) Com a visão intacta poderemos então assistir ao lamentável espectáculo das ruínas incoerentes, daquilo que parecia, ainda há instantes, ser um número exacto, convincente e decisivo».


O Senhor Kraus, Gonçalo M Tavares, ilustrações de Rachel Caiano, Editorial Caminho, Lisboa 2005


© Teresa Sá Couto

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