O poeta Joaquim Pessoa, cativo de Lisboa, escreveu: «Em Lisboa a gente morre sem idade. /Devagar. Como se faz uma canção. /E há um pássaro que voa. É a saudade. /E uma janela aberta. O coração.». Também Fernando Pessoa, o poeta que tinha a cidade no sangue, nela se desapoquenta, escrevendo «como quem respira melhor sem que a doença haja passado».
Num gesto de grande fotografia, Henrique Dinis da Gama traz-nos a alma de uma cidade inteira que desce até ao rio. Como um pássaro alado e imenso que, sequioso, vai beber ao Tejo. E assim o exterior, uma vez mais, vem beber ao interior das nossas emoções. Trata-se do belíssimo livro «Baixa Pombalina – a luz obscura do iluminismo», de Henrique Dinis da Gama, tem a chancela da Editorial Caminho, editora que está há 30 anos (1975-2005) ao serviço da Cultura em Portugal. Um caminho luxuriante de homenagem à cidade, musa de quem a olha, e uma proposta aos leitores que querem ser espectadores e agentes do indefinível. Um livro que nos ensina a olhar e a sentir um património que é há muito tempo, descuidadamente, nosso.
Centrado na Baixa de Lisboa, o autor convida-nos, a partir de fotografias, a entrar no jogo entre a realidade retratada e a subjectividade do olhar da câmara. A fronteira entre objectividade e subjectividade é esboroada pela teatralidade com que se recriam os espaços, incitando-nos a (re)descobrir os locais e a adoptar uma postura de questionamento e reflexão em torno da fotografia, e sensações provocadas. Tratar assim a realidade, preenchendo-a de sentidos, é apanágio da grande fotografia. O processo de criação manifesta-se em imagens assombrosas, com muitas das fotografias, ainda, em cumplicidade com a pintura, como se de uma «Tela alucinada» se tratasse – não será ao acaso que o autor invoca a pintura de Mário Eloy (obra Lisboa, de 1934), a qual «terá entendido onde se encontrava o espírito da cidade» e os «os abismos da sua alma».
Fernando Pessoa apresentou-nos Lisboa calcorreada pela sua alma, num compêndio de desassossego e apaziguamento: «amo o Tejo porque há uma cidade grande à beira dele. Gozo o céu porque o vejo de um quarto andar da rua da baixa. Nada o campo ou a natureza me pode dar que valha a majestade irregular da cidade tranquila, sob o luar, vista da Graça ou de S. Pedro de Alcântara. Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido vastíssimo de Lisboa.».
O poeta olhava Lisboa, como o próprio diz, com «um êxtase de ver, íntimo e postiço». É este arrebatamento criador que encontramos no olhar de Henrique Dinis da Gama. Surgem-nos ruas numa «quase irrealidade», captadas de muitos dos lugares elevados da cidade das sete colinas, que propiciam quadros de esmagadora beleza. Do plano geral ao plano de pormenor, nada escapa ao olhar atento e íntimo da câmara: a cidade ergue-se «quase a prumo falso», mostra-se a «linha monumental do Terreiro do Paço» e do Bairro Alto sobre o Tejo, largos e pátios, fachadas e arcadas, telhados, saguões, mansardas, coberturas, candeeiros, sacadas, jogos de esquinas, escadas, desníveis e suas resoluções. Não é esquecida a luminosidade singular de Lisboa, «a luz oblíqua nas ruas estreitas», aprisionada no instante mágico que o disparo pereniza. Nem os seus silêncios, janelas de mistério.
A densidade histórica é igualmente apreendida pela câmara fotográfica, e memória e realidade fundem-se num léxico pictórico prenhe de sentido. As fotografias são acompanhadas por textos, também de Dinis da Gama, num todo organizado em pequenos capítulos temáticos. Pretende apresentar-se a história da cidade desde o terramoto de 1755, considerado pelo autor como a «oportunidade única para a reconstrução de Lisboa» e dignificação do espaço. O Marquês de Pombal é tido como o espírito das Luzes em Portugal, espírito que «reincarnou nos que se lhe seguiram», como Fontes Pereira de Melo ou Duarte Pacheco, está presente nos grandes empreendimentos como a exposição do mundo português, em pleno estado novo e até, defende, na Expo 98, tudo «realizações que se destinaram a divulgar, uma vez mais, ao mundo, uma nova imagem de Portugal.».
A história da cidade é feita desde a reprodução de ilustrações dos sécs. XVIII a XIX, realizadas por estrangeiros – o que atesta o fascínio internacional por este espaço luso –, seguindo-se fotografias com a ambiência do Estado Novo, até à actualidade. É mostrada a «Lisboa sinuosa do fado», dos bairros históricos, a Lisboa da «modernidade estendida», mas sempre em reconstrução, sempre «à procura de escala», entre passado e presente, bairros e calçadas, e o sonho do futuro. Joaquim Pessoa escreveu: «É aqui, de bruços sobre a espuma /que o mar nos causa dor de estar em terra. /E as palavras nos doem uma a uma. /E os homens em Lisboa fazem guerra.».
Com a Baixa Pombalina na "guerra das candidaturas" a Património Mundial da UNESCO há, concordemos, muito que fazer para se nobilitar o espaço que anda demasiado vilipendiado. Este livro mostra-nos como se dignifica esse espaço, com uma solução elementar: ensina-nos a senti-lo.
Baixa Pombalina – a luz obscura do iluminismo, Henrique Dinis da Gama, Editorial Caminho, Lisboa 2005
© Teresa Sá Couto
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