Dizia Egito Gonçalves que os poetas «têm um sonho, todos/ se esforçam por valer o pão/ que amassam». Sabemos nós que as penas da criação têm de lutar também contra as penas do olvido. E tão esquecido tem andado o poeta que escrevia sobre o presente, raspando o real quotidiano até atingir «o cerne emparedado», esculpindo no cerne das nossas emoções a memória e a saudade.
Porque «Nós vamos deixando pelo caminho/ os farrapos da pele», o rogo silencioso da criação foi escutado pela Campo das Letras que editou um daqueles farrapos com que se entende o mundo: «Entre Mim e a Minha Morte Há ainda um Copo de Crepúsculo» é um livro de inéditos do poeta que faleceu no ano 2000, quando completou 80 anos de idade. Agora, que se abram de novo as artérias para que elas povoem os lugares da poética egiteana. É hora de redescobrir o poeta.
Egipto Gonçalves começou a publicar poesia nos anos 50. Influenciado pelo Neo-realismo – e surrealismo –, o autor, todavia, não se deteve na poesia de circunstância ideológica e traçou o seu percurso de originalidade que nos chega até este livro com profunda homogeneidade temática. O espaço da escrita é um espaço luminoso com imagens do real a irromper nas páginas, como «rio de rápidos nervosos» que guiam o poeta no labirinto onde se perde e se reconhece, «em cada encontro, em cada linguagem»:
os versos que me surgem pelas ruas
têm o sono de um cavalo selvagem,
logo voam como flamingos. Deles
falo com cuidado; expurgo o insuportável
para a pele do leitor, os espinhos
que as picadas dos insectos segregam,
os dentes que se revelam flores carnívoras;
arcas inesgotáveis, caligrafia de sombras
que reservam a luz. Lanço ao Douro objectos,
memorias, desejos que não passaram
os limites. O mar devolve tudo: abro
as arcas; salgadas, as coisas ganham
novo aspecto; o caleidoscópio alerta
dias, estações, luzes, negativos.
As coisas parecem agora ser poemas
tocados por um pássaro: no seu bico,
uma haste do tempo reverdece.
têm o sono de um cavalo selvagem,
logo voam como flamingos. Deles
falo com cuidado; expurgo o insuportável
para a pele do leitor, os espinhos
que as picadas dos insectos segregam,
os dentes que se revelam flores carnívoras;
arcas inesgotáveis, caligrafia de sombras
que reservam a luz. Lanço ao Douro objectos,
memorias, desejos que não passaram
os limites. O mar devolve tudo: abro
as arcas; salgadas, as coisas ganham
novo aspecto; o caleidoscópio alerta
dias, estações, luzes, negativos.
As coisas parecem agora ser poemas
tocados por um pássaro: no seu bico,
uma haste do tempo reverdece.
Construída com quadros visuais e conceptuais, e com forte vertente narrativa, a poesia egiteana mostra-nos de forma singular os espaços da cidade do Porto. Embrenhamo-nos no Majestic, onde «uma névoa cobre os espelhos do café. /A névoa das ruas da cidade /refugiou-se aqui, seguiu o exemplo /dos nossos passos» de mãos dadas com esta poesia, onde as «as ruas são o nosso lugar (…) sermos o espaço /onde a cidade adquire consciência /e revela os seus arquivos, o fluir/ do rio que nos transporta os olhos /para o mar quando a névoa se abre /e deixa que as arvores se derramem /nas encostas (…)/ iremos dar nova forma às coisas, /surpreender os lugares até onde /a paixão nos trouxe; inscrevemo-nos /num espaço de árduas lutas, sonhos /de liberdade, flores nascidas /do sangue dos vencidos. (…)»;
Entramos no Cinema Rivoli onde «por dez tostões subíamos à galeria. /do alto víamos as divas, aprendíamos /a beijar – mal, é evidente: o código /heyes lá estava para nos impedir /de estremecer a fundo»; Sentamo-nos no Cinema batalha, onde os «heróis montavam a cavalo» e «os bandidos também» e à saída «em nós prolongava-se e ardia /o espírito de justiça, a imperecível /imagem do herói, o terreno fértil /para os que se seguiriam: Tom Mix, /Robin dos Bosques, Salvador Allende, Zorro, /Salgueiro Maia…»...
A palavra, corpo do real e do erotismo
Prenhe de tensão emocional, o discurso existencial de Egito Gonçalves constrói-se com expressão minuciosa e rigorosa onde coabitam individual e universal. Escrevendo nesta geografia, o poeta vigilante reage denunciado a castração humana, tudo o que contrarie a liberdade:
No Verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom – seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras.
A aspiração à liberdade é gritada no acto da criação e a palavra, feita corpo da realidade, encontra o erotismo com o qual se alia numa comunhão surpreendente:
escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto: carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar no teu seio e,
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intramuros, ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.
Egito Gonçalves disse: «do milénio /atravessaremos a fronteira com asa /rutilante, não perderemos as sementes, /as estrelas prosseguirão nos violinos». Este livro de textos originais, comprova-o.
Entre Mim e a Minha Morte Há ainda um Copo de Crepúsculo, Egito Gonçalves, Editorial Campo das Letras, Porto, Fevereiro de 2006
© Teresa Sá Couto
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