Atenção a este título, que tem uma surpresa no seu interior ou não tivesse na fronte o nome Antero de Quental, o líder da Geração de 70, seu mestre, mentor e inspirador. Não se trata de poesia anteriana, mas de prosa de intervenção, irónica e sarcástica. São publicadas, pela primeira vez em livro, correspondências do “Bacharel José”, pseudónimo da ínclita personalidade, que as escreveu entre 1864 e 1865 no jornal “O Século XIX”, de Penafiel.
A Coimbra dos estudantes é vista pela lupa da irreverência, do inconformismo, do humor que desnuda, manuseada pelo “apostolado social” de quem teve o sonho revolucionário de modernizar Portugal. O mesmo que, do alto dos seus vinte anos e do Penedo da Saudade, desabafava premonitoriamente : «É duvidoso se haverá prosperidade para este deplorável Portugalório».
Atestam-se ufanos tempos de estudo, com Antero desabrido: «Um correspondente que deixa escapar aos bicos da pena os acontecimentos mais graúdos, perdendo assim a ocasião de abrir a boca ao leitor com as duas pontas dum dilema bem formado, produto da sua lógica impenetrável, comete decerto um pecado tão grave que não sei de água benta que o possa ungir e absolver. Excomungado! Eu?!... Paciência – entre o anátema e a forca não há que hesitar.».
Com recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins, o livro «Antero de Quental – O Bacharel José», reúne correspondências que ficaram de fora de anteriores edições, como as do volume de “Prosas I” e do segundo volume de “Subsídios”.
O estado do ensino superior e educação em geral…
Autor do “Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País”, Antero (1842-1891) apresenta-nos nestas crónicas uma observação cortante sobre a Educação, e ao mesmo tempo esclarecedora do seu pseudónimo irónico:
«Toda aquela escolástica é sumamente recreativa; é, sem a menor dúvida, a primeira máquina de fazer imbecis ilustrados que existe no país. A imbecilidade palavrosa e pretensiosa, que hoje domina em Portugal, e os estabelecimentos de instrução dita superior são coisas correlativas e que se explicam uma pela outra. Nação de bacharéis que pode fazer senão bacharelar?».
Segundo Antero, a incultura é generalizada, apanágio do próprio povo, sobre a qual lançava, como dizia dele Eça de Queirós, «o seu assobio malicioso» que «nele andava sempre ao lado da acção»:
A religião é o anjo, que este povo instintivamente abraça, como símbolo da vida. (…) Pena é que o anjo não tenha asas que o possam levar ao céu! (…) Para que a religião nos pudesse salvar, era preciso que fosse o que devera ser; e que mão inimiga tem desvirtuado, fazendo dela um partido político ou corrilho de interesses. Ainda assim a religião é como dissemos a única estrela que brilha para o povo nas trevas da dissolução social. O povo não tem escolas, não sabe ler, pede o pão do espírito e respondem-lhe: “Outro dia será, irmãozinho!” Tirem-lhe agora a religião e toda essa gente morre desesperada.
Eram visíveis as preocupações de Antero que se assume, desde esses verdes anos, como a consciência de uma época e da necessidade de renovar as mentalidades preparando-as para um novo século. Líder ideológico do grupo da Geração de 70, com Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Eça e Guerra Junqueiro, teve grande implementação no meio universitário, influenciando nos gostos e interesses todos os que com ele conviveram.
Quando o progresso invade o provincianismo A mudança pretendida para o país estendia-se, também, ao domínio social e económico. O bacharel José mostra-nos nas suas crónicas a resistência dos portugueses à mudança ou a sua não consonância. A criação da Linha-férrea suscita-nos episódios e observações entre o cepticismo no progresso e a hilaridade suscitada pelas figuras desadequadas:
O brasileiro, namorado como está da sua obra, não dá pela falta: e não admira; também o cego não vê a estrada que vai pisando. Mas certo público – o público – que não é cego – conhece bem que a mudança foi só no vestido; e nesse descobre ainda a traidora arrecada por baixo do chapelinho da moda ou o bico do tamanco meio encoberto pela fofa crinolina. – Estamos no caso. – O governo é um brasileiro endinheirado. – Coimbra é uma camponesa vestida à moderna de modo que acima fica dito. O vestido que lhe deram é o caminho-de-ferro; e como se não sabe ajeitar com ele, anda aí por essas ruas que parece mesmo uma endemoninhada! Move-se e agita-se, mas desgraçada!, não pode por mais que trabalhe esconder as pequenas faltas.
As manifestações de cultura
Nada escapa ao olhar acutilante de Antero. Escarnece dos gostos que ditavam as euforias literárias, a escolha dos espectáculos, récitas, saraus, palestras e inúmeras actividades, "supostamente" culturais. Sobre a edição em delírio de um poeta ultra romântico, fala-nos assim:
É peça de muito merecimento literário, e que se pode cantar com a música das cantigas populares, por isso lhe agouramos uma bem merecida celebridade e longa vida. Agora mesmo acabámos de assistir a um ensaio em que se cantou o dito hino no estilo bem conhecido do “Manuel Ceguinho”, e ficámos maravilhados do bem que a letra diz com a música.
Critica as récitas e espectáculos no Teatro D. Luís, local da moda e da elegância, desancando tudo e todos:
Ainda bem que enquanto uns pasmam e admiram, criticam outros; ora como a pasmaceira não é coisa que interessa alguém, a não ser quem está pasmado; vamos ao teatro e oiçamos a crítica, posto que, mesmo isto, não seja muito para divertir.
Antero de Quental – O Bacharel José; recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins; Editorial Presença, Lisboa 2005
© Teresa Sá Couto
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