Quantas vezes é necessário pôr o mundo às avessas para o compreender? No avesso do esperado andam as histórias de Gonçalo M Tavares, para que possamos seguir a direito rumo ao conhecimento. E seguir sem hesitação, porque «O homem no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer. Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desço? Até que certo dia a escada caiu.».
O senhor Brecht conta histórias. Algumas tão curtas que são apenas uma frase. Quando as começa a contar, tem a sala quase vazia. Como muitas das páginas brancas onde cintilam duas ou três frases. Quando acaba de contar a sua quinquagésima história, repara que a sala está cheia, aventamos, de gente aturdida pela intensidade do mundo interior que lhe foi apresentado; gente que ficou porque partiu para o lugar mais íntimo da conjura – o pensamento, o lugar do desassossego.
Sobre este lugar de inquietação e, por isso, de revelação, motivado por este livro de Gonçalo M. Tavares, recupero palavras de Herman Hesse, do seu soberbo romance «Demian»:
«As coisas que observamos são as mesmas que se encontram em nós. Não existe realidade para além daquela que está no nosso íntimo. A razão pela qual as pessoas vivem tão ficticiamente é tomarem por realidade as figuras do exterior, enquanto que, ao seu próprio interior, não o suportam. É possível ser-se feliz deste modo; porém, após uma pessoa tomar conhecimento do que há para além disto, deixa de ter hipótese de optar por seguir o caminho dos demais. O caminho da maioria da gente é fácil, o nosso é difícil… Vamos.».
.
O mundo de Abel e Caim
O mundo que nos é apresentado é o nosso. É obscuro, é agridoce, é Caim e Abel. Porém, todos temos um sinal na testa, a marca distintiva da nossa própria narrativa interna, mesmo que dissimulado por baixo da pele, por baixo da vergonha em o assumirmos, dentro do medo das interpretações que os outros possam fazer, ou por baixo da ignorância. Gonçalo mostra-nos que sabe esse nosso segredo. Não por adivinhação, mas por análise e reflexão sobre o ser humano.
Muitos têm tentado definir o homem. Poucos sabem o que ele é. Muitos pressentem-no. Gonçalo Tavares explica-o assim: «Num certo país apareceu um homem com duas cabeças. Foi considerado um monstro, e não um homem. Noutro país apareceu um homem que estava sempre feliz. Foi considerado um monstro, e não um homem.».
Há histórias de fé e de dúvida, sabendo-se que andam a par e que uma condiciona a outra. E há o grito, a angústia e atávicas dores. E sempre a surpresa de uma narrativa certeira. É-nos assim contada a história do «Desempregado com filhos»:
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão. Ele estava desempregado há muito tempo: tinha filhos, aceitou. Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta. Ele estava desempregado há muito tempo: tinha filhos, aceitou. Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego. Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça. Ele estava desempregado há muito tempo: tinha filhos, aceitou.
A história do mundo compõe-se com os homens. O mundo dentro dos homens tem que ser renovado dia após dia, ou nada serão. «A escrita fixa o movimento da mão» e seguimos em revoada esse ditado do movimento deste autor que até nos mostra o perigo da cultura:
Uma galinha pensava tanto e era tão culta que ganhou uma obstrução interior, deixando de pôr ovos. Mataram-na no dia seguinte.
e outras avarias deste nosso mundo:
Por um curto-circuito eléctrico incompreensível o electrocutado foi o funcionário que baixou a alavanca e não o criminoso que se encontrava sentado na cadeira. Como não conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a alavanca mortal.
O Senhor Brecht, Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, Lisboa, 2004
© Teresa Sá Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário