A Língua Posta a Salvo de Elias Canetti, Wallenstein de Friedrich von Schiller, Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán e O Livro do Cortesão de Baldesar Castiglione são quatro clássicos fulgurantes que se encontram no mercado, pela primeira vez traduzidos para português contemporâneo. As edições inserem-se no «Projecto da União Europeia para melhor conhecimento dos grandes clássicos europeus» e têm a chancela da Campo das Letras em colaboração com o Departamento da Comissão da União Europeia para a Educação, Audiovisual e Cultura. Sem dúvida, são quatro títulos para leituras inesperadas, para vários gostos destas férias. Muito boas leituras!
Não é um romance, mas lê-se como se o fosse. Tampouco é um ensaio, mas apresenta um problema e explana-o argumentativamente incitando-nos à reflexão. A Língua Posta a Salvo de Elias Canetti – no original, Die gerettete Zunge – Geschichte einer Jugend – é a primeira de três partes de uma narrativa autobiográfica, publicada entre 1977 e 1985, que está nas livrarias com tradução de Maria Hermínia Brandão.
Prémio Nobel da Literatura em 1981, Elias Canetti (1905-1994) foi sociólogo, ensaísta, romancista e dramaturgo. Búlgaro, filho de um comerciante judeu sefardita, construiu em língua alemã, a sua língua da paixão, uma obra literária gizada no seu tempo, vigorosa, inquiridora e com reconhecido poder artístico. Nas 309 páginas deste A Língua Posta a Salvo, encontramos aquelas características, para uma leitura a um mesmo tempo intensa e fluida, com desafios intelectuais actualíssimos, como é apanágio de Elias Canetti. (Ler o meu texto crítico completo no site Orgia Literária).
Pleno de esplendor dramatúrgico, temos as 368 páginas de Wallenstein, título que reúne o conjunto de três peças, do historiador e dramaturgo alemão Friedrich von Schiller (1759-1805). O primeiro texto, O Campo de Wallenstein, foi estreado em 1798 e com ele se abriu uma reflexão sobre a vã glória do poder, o jogo de máscaras no período devastador da guerra dos 30 anos – com as lutas ferozes entre católicos e protestes que martirizaram a Europa – a avidez, a insídia, a vingança e a ruína.
No centro do retrato da época, a figura do ambicioso general e duque de Friedland, Albrecht von Wallenstein, que formou um temível exército de mercenários e que, tentado pelo trono da Boémia, negoceia a paz com o inimigo, à revelia do seu soberano. Acusado de traição, prepara-se a conjura que ditará o seu assassinato.
Sobre o seu Wallenstein, escreve Friedrich Schiller, em carta a Iffland, datada de 12 de Outubro de 1798:
«Wallenstein» é uma série de três peças: «O Campo de Wallenstein» é um Prólogo em 1 acto que se representa em 5 quartos de hora e tem as personagens mais diversas. É uma pintura do exército wallensteiniano, dá uma imagem da situação da Alemanha na Guerra dos 30 anos, mostra a disposição dos regimentos a favor e contra o general e destina-se a desenhar o terreno sobre o qual se desenrola o empreendimento de Wallenstein. Pode representar-se isolada, mas fica melhor se for associada à segunda peça.
O segundo texto chama-se «Os Piccolomini», do nome das duas personagens que mais intervêm. É em 5 actos, mas não chega a levar duas horas a representar. Esta peça compreende toda a exposição do «Wallenstein» e acaba quando os dados estão lançados. No fim tem um epílogo que forma a transição para a terceira peça.
A terceira peça chama-se «Queda e Morte de Wallenstein» e é a tragédia propriamente dita. Como a exposição já teve lugar e os dados já estão lançados, é uma acção contínua e ininterrupta desde a primeira cena. Tem também 5 actos e representa-se em menos de 3 horas.».
Sobre o seu Wallenstein, escreve Friedrich Schiller, em carta a Iffland, datada de 12 de Outubro de 1798:
«Wallenstein» é uma série de três peças: «O Campo de Wallenstein» é um Prólogo em 1 acto que se representa em 5 quartos de hora e tem as personagens mais diversas. É uma pintura do exército wallensteiniano, dá uma imagem da situação da Alemanha na Guerra dos 30 anos, mostra a disposição dos regimentos a favor e contra o general e destina-se a desenhar o terreno sobre o qual se desenrola o empreendimento de Wallenstein. Pode representar-se isolada, mas fica melhor se for associada à segunda peça.
O segundo texto chama-se «Os Piccolomini», do nome das duas personagens que mais intervêm. É em 5 actos, mas não chega a levar duas horas a representar. Esta peça compreende toda a exposição do «Wallenstein» e acaba quando os dados estão lançados. No fim tem um epílogo que forma a transição para a terceira peça.
A terceira peça chama-se «Queda e Morte de Wallenstein» e é a tragédia propriamente dita. Como a exposição já teve lugar e os dados já estão lançados, é uma acção contínua e ininterrupta desde a primeira cena. Tem também 5 actos e representa-se em menos de 3 horas.».
Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán (1547- data incerta, mas após 1615) é um clássico do "Século de Ouro" da literatura castelhana, picaresco, humorístico e satírico onde se espelha a sociedade espanhola do início do século XVII. Publicada entre 1599 e 1604, o seu pronto sucesso projectou-o fora de portas, com múltiplas edições no século XVII e traduções para francês, alemão e inglês.
Em arejadas, diligentes e magníficas 672 páginas, numa tradução de excelência de António Pescada, como é seu timbre, narram-se na primeira pessoa as andanças picarescas de Guzmán de Alfarache, um anti-herói nascido em Sevilha em 1547 e desaparecido no México em data incerta. O resultado é um tomo de literatura didáctica que retrata uma época (a sociedade ibérica da transição do século XVI para o século XVII) aliando o carácter moralizador ao lúdico, instigando-nos à eterna reflexão sobre a condição existencial, a errância humana, com os seus momentos de “balanço de vida”, de júbilo e contrição. E corre assim a narrativa quinhentista que, lesta, retrata qualquer tempo, pois todo o tempo motiva a reflexão sobre as virtudes humanas e a falta delas:
Não te darão cadeira nem lugar ao lado quando te virem depenado, mesmo que te vejam revestido de virtudes e de ciência. Nem se faz já caso desses tais. Mas, se representares bem, nem que sejas uma esterqueira, se estiveres coberto de erva, virão recrear-se em ti. Não o sentiu assim Catulo, quando ao ver Nónio num carro triunfal, disse: “Para que esterqueira levais esse carro de lixo?” Dando a entender que as dignidades não melhoram os viciosos. Mas já não há Catulos, embora sejam muitos os Nónios. Quando fores alquimia, aquilo que em ti reluzir é que será venerado. Já não se julgam almas, nem mais do que aquilo que os olhos vêem. Ninguém se põe a considerar o que tu sabes, mas o que tens; não a tua virtude, mas a da tua bolsa; e da tua bolsa não o que tens, mas como o gastas. p.474.
Em arejadas, diligentes e magníficas 672 páginas, numa tradução de excelência de António Pescada, como é seu timbre, narram-se na primeira pessoa as andanças picarescas de Guzmán de Alfarache, um anti-herói nascido em Sevilha em 1547 e desaparecido no México em data incerta. O resultado é um tomo de literatura didáctica que retrata uma época (a sociedade ibérica da transição do século XVI para o século XVII) aliando o carácter moralizador ao lúdico, instigando-nos à eterna reflexão sobre a condição existencial, a errância humana, com os seus momentos de “balanço de vida”, de júbilo e contrição. E corre assim a narrativa quinhentista que, lesta, retrata qualquer tempo, pois todo o tempo motiva a reflexão sobre as virtudes humanas e a falta delas:
Não te darão cadeira nem lugar ao lado quando te virem depenado, mesmo que te vejam revestido de virtudes e de ciência. Nem se faz já caso desses tais. Mas, se representares bem, nem que sejas uma esterqueira, se estiveres coberto de erva, virão recrear-se em ti. Não o sentiu assim Catulo, quando ao ver Nónio num carro triunfal, disse: “Para que esterqueira levais esse carro de lixo?” Dando a entender que as dignidades não melhoram os viciosos. Mas já não há Catulos, embora sejam muitos os Nónios. Quando fores alquimia, aquilo que em ti reluzir é que será venerado. Já não se julgam almas, nem mais do que aquilo que os olhos vêem. Ninguém se põe a considerar o que tu sabes, mas o que tens; não a tua virtude, mas a da tua bolsa; e da tua bolsa não o que tens, mas como o gastas. p.474.
A elite deve dar o exemplo virtuoso; em quinhentos dir-se-ia que o perfeito cortesão devia ter «discrição, decoro e graciosidade», além de que só assim se podia, e pode, «fazer amigos e conquistar pessoas». Para se ensinar e incentivar essas posturas, pegue-se em citações ocultas de Cícero, Horácio, Lucrécio, Platão ou Aristóteles, observe-se a realidade política e social da pomposa Itália renascentista, a psicologia, os hábitos, e verta-se tudo numa crónica de costumes em jeito de guia de boas maneiras construído com diálogos imaginários entre membros da corte de Urbino, em 1507.
Assim irrompeu, em 1528, O Livro do Cortesão de Baldesar Castiglione (1478-1529) – ele que foi cortesão, diplomata, soldado e escritor –, que nos chega na tradução segura de Carlos Aboim de Brito. São quatro capítulos, correspondendo a quatro «Livros» do Cortesão, para outros tantos serões de diálogos.
Documento histórico – história política, social e das mentalidades – a narrativa extravasa em muito a actualidade da época em que se inscreveu: a identificação é fácil para o leitor actual, que segue o manifesto com muitos sorrisos e embrenha-se com gosto nos relatos de episódios pitorescos. Surpreendente é ainda a visão que se apresenta sobre a mulher ideal e, percorrendo toda a obra, o manifesto em sua defesa e protecção. Ora veja-se:
Mas a maneira de se comportar nas conversas de amor que eu quero que a minha dama utilize será recusar acreditar sempre que aquele lhe fala de amor a ama realmente; e se o gentil-homem é, como muitas vezes acontece, presunçoso e lhe fala com pouco respeito, ela dar-lhe-á uma resposta tal que ele saberá claramente que lhe causa desprazer. Mas se é discreto e usa termos modestos, falando de amor com palavras veladas, com uma maneira honesta que creio utilizaria o cortesão que estes senhores definiram, a dama fingirá não compreender e acolherá as suas palavras com outro significado, procurando sempre, de maneira modesta, e com o juízo e prudência que já dissemos ouvir-lhe, abandonar esse assunto. Mas se a conversa é tal que não pode simular não compreender, acolherá tudo como um gracejo, diminuindo os seus méritos e atribuindo à cortesia do gentil-homem os louvores que ele dará; por essa via, mostrar-se-á sensata e ficará ao abrigo dos enganos. Parece-me, pois, que é deste modo que a dama do palácio deve comportar-se nas questões de amor. p. 228
Documento histórico – história política, social e das mentalidades – a narrativa extravasa em muito a actualidade da época em que se inscreveu: a identificação é fácil para o leitor actual, que segue o manifesto com muitos sorrisos e embrenha-se com gosto nos relatos de episódios pitorescos. Surpreendente é ainda a visão que se apresenta sobre a mulher ideal e, percorrendo toda a obra, o manifesto em sua defesa e protecção. Ora veja-se:
Mas a maneira de se comportar nas conversas de amor que eu quero que a minha dama utilize será recusar acreditar sempre que aquele lhe fala de amor a ama realmente; e se o gentil-homem é, como muitas vezes acontece, presunçoso e lhe fala com pouco respeito, ela dar-lhe-á uma resposta tal que ele saberá claramente que lhe causa desprazer. Mas se é discreto e usa termos modestos, falando de amor com palavras veladas, com uma maneira honesta que creio utilizaria o cortesão que estes senhores definiram, a dama fingirá não compreender e acolherá as suas palavras com outro significado, procurando sempre, de maneira modesta, e com o juízo e prudência que já dissemos ouvir-lhe, abandonar esse assunto. Mas se a conversa é tal que não pode simular não compreender, acolherá tudo como um gracejo, diminuindo os seus méritos e atribuindo à cortesia do gentil-homem os louvores que ele dará; por essa via, mostrar-se-á sensata e ficará ao abrigo dos enganos. Parece-me, pois, que é deste modo que a dama do palácio deve comportar-se nas questões de amor. p. 228
© Teresa Sá Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário