«T a Bernardim» é o título dum livro de poemas de Teresa Tudela, um «prodígio de asas» que nos regozija e surpreende. Deve ler-se e ouvir-se devagar – traz um CD com declamações de 36 dos 83 poemas – e deixar que a pele da alma absorva os nutrientes da emoção, só possível pela alquimia da grande poesia. E a emoção advém do encontro com Bernardim Ribeiro, o poeta renascentista que tão alto ergueu a «dor artística», o enleio interior, a tristeza que escorre de todas as coisas e que desagua na eternidade.
Com Bernardim «ainda presente em diáspora e no exílio da tristeza», a autora estabelece diálogo da e com a «Menina e Moça» – novela do poeta de seiscentos, também conhecida pelo nome «Saudades», na edição de Évora. São ecos dessas saudades tão antigas quanto o tempo da nação portuguesa que Teresa faz soar neste livro: «de longe /mando-te um búzio /recolhe bem /esse murmúrio /ao ouvido».
A espiritualidade superior da mulher
O sentimento de tristeza literário associado à mulher e expresso pela própria remonta às nossas cantigas de amigo – escritas por homens, sendo o sujeito poético feminino e executadas pela mulheres –, atinge pujança na novela sentimental de Bernardim, que por sua vez inspira o romantismo do séc. XIX; Almeida Garrett, em Frei luís de Sousa, faz referência ao autor de Menina e Moça. Sendo a tristeza o sinal de uma espiritualidade e revelador de uma verdade oculta, ser expressa por mulheres confere-lhes um poder divino.
Seguindo essa sabedoria feminina, de «dimensão inacabada» e secreta, escreve Teresa Tudela: «Nem saberás /do pacto entre mim e o meu peito». Nesse contrato com a alma, está a procura do entendimento pelo amor – Aceita um pouco /também /os meus contrários em mim /temores fraquezas /trespasses de frio neblinas – ainda que vão, pois enamoramento e tristeza conjuram-se no destino da mulher: o amor não é crime antes dever /mistério maior da vida /a que se há-de a braço /a pulso /todos os dias viver.
Seguindo essa sabedoria feminina, de «dimensão inacabada» e secreta, escreve Teresa Tudela: «Nem saberás /do pacto entre mim e o meu peito». Nesse contrato com a alma, está a procura do entendimento pelo amor – Aceita um pouco /também /os meus contrários em mim /temores fraquezas /trespasses de frio neblinas – ainda que vão, pois enamoramento e tristeza conjuram-se no destino da mulher: o amor não é crime antes dever /mistério maior da vida /a que se há-de a braço /a pulso /todos os dias viver.
Também a ausência do amado é transmitida de forma quase pungente e veicula uma alma desterrada no e pelo mundo : E sem ti /não há a quem dar todo o mundo.
Todavia, o maior exílio é a impossibilidade da tristeza não encontrar a escrita: Maior a crescer é o medo /de ver a vida não caber /por entre as sílabas maiores /do texto gravado a negro na memória branca do papel.
Todavia, o maior exílio é a impossibilidade da tristeza não encontrar a escrita: Maior a crescer é o medo /de ver a vida não caber /por entre as sílabas maiores /do texto gravado a negro na memória branca do papel.
O papel das águas
O mar tem presença fortíssima em Bernardim, como aliás se verifica desde as primeiras composições medievais peninsulares. Marcando a fronteira entre o peso do terrestre e o apelo da espiritualidade, o mar surge, também, como espelho e reflexo do tormento das gentes. Teresa, apostada no «derramar da vela», liberta do limbo a psicologia antiga, num «grito que ganhou a idade da espera», do povo de coração agrilhoado:
«sou de peso sou de terra /trago o horizonte curvo /marejado nas pupilas /vidrado a chumbo no olhar», diz o texto descarnando uma «infinita dor» que «bombeia sístoles com pressa inusitada /no músculo pequeno e vermelho /em caixa fechada»
E surgem os pescadores, o mar, água de dor e morte, e o diálogo com o divino impregnados no ser português:
onde bóiam gaivotas /distantes poucas braças da orla /negra dos sargaços arrancados pela recente /fúria das marés /ninguém os vem já buscar à praia /mulheres possantes já não /enterradas de saias negras /infladas nas ondas /horas de forças rijas /gélidas salgadas /gadanhos moscas e bois /anacronias antigas /sem protectores solares /para pôr riquezas na terra /que as há-de em dobro tornar /caldo e pão /vinho nas pipas /e em sendo tempo /algumas dálias senhora /pró altar /anacronia maior este verão a acabar
Noutro passo, efectiva-se a osmose pungente com as mulheres das sete saias desditosas, conluio só possível no feminino:
«sou de peso sou de terra /trago o horizonte curvo /marejado nas pupilas /vidrado a chumbo no olhar», diz o texto descarnando uma «infinita dor» que «bombeia sístoles com pressa inusitada /no músculo pequeno e vermelho /em caixa fechada»
E surgem os pescadores, o mar, água de dor e morte, e o diálogo com o divino impregnados no ser português:
onde bóiam gaivotas /distantes poucas braças da orla /negra dos sargaços arrancados pela recente /fúria das marés /ninguém os vem já buscar à praia /mulheres possantes já não /enterradas de saias negras /infladas nas ondas /horas de forças rijas /gélidas salgadas /gadanhos moscas e bois /anacronias antigas /sem protectores solares /para pôr riquezas na terra /que as há-de em dobro tornar /caldo e pão /vinho nas pipas /e em sendo tempo /algumas dálias senhora /pró altar /anacronia maior este verão a acabar
Noutro passo, efectiva-se a osmose pungente com as mulheres das sete saias desditosas, conluio só possível no feminino:
Vou hoje deitar-me com a saia sobre a cabeça /como as mulheres da Nazaré sobre a desgraça /não sei a que me leva o sonho ou se é destino /qual a desdita da noite /a não ser /depositar-me aqui à margem.
Enigmas de Bernardim
No final, um poema que sintetiza o mistério de Bernardim que tem levado a polémicas sobre significados políticos e religiosos escondidos no texto Menina e Moça, no se diz respeito à sua relação com os judeus na época em que a Península Ibérica está marcada pela conversão – forçada ou deliberada. Refira-se a este propósito a obra crítica de Hélder Macedo, O Significado Oculto da Menina e Moça, editada em 1977 pela Morais Editores, onde o autor, numa análise fulgurante, apresenta a vertente cabalística do texto de Bernardim Ribeiro. Teresa Tudela consegue num poema curto desfraldar todas essas questões, com uma imagem vibrante: coloca a estrela, símbolo do povo judeu – em que os 12 lados demonstraram a disposição das 12 tribos de Israel durante sua jornada de 40 anos no deserto, após sua saída do Egipto em direcção à Terra de Israel – nas mãos de Bernardim, com as seis pontas orientadas para a dor do exílio:
Essa tristeza /esse exílio /da vida ampla em faixa estreita /obstinada /se calhar abriste a tua estrela de David /e desdobrou-se em ziguezague na mão /que a tinha /viste a tristeza inscrita numa ponta /e quando olhaste para a mão esquerda em simetria /abriste os dedos em estrela /tua /e julgaste /ver nela em espelho o exílio replicado /das outras cinco pontas /de David /Bernardim /é ainda certo o teu nome.
Sobressai na declamação o jogo de palavras no último verso, com o «é ainda certo» – ligando-se à característica oralizante da escrita de Bernardim –, que resvala para «é ainda (in)certo» com o que se reforça o saber incompleto que se tem do genial escritor do século XVI, ainda que se lhe seja mais desconhecida a vida do que a obra.
No final, um poema que sintetiza o mistério de Bernardim que tem levado a polémicas sobre significados políticos e religiosos escondidos no texto Menina e Moça, no se diz respeito à sua relação com os judeus na época em que a Península Ibérica está marcada pela conversão – forçada ou deliberada. Refira-se a este propósito a obra crítica de Hélder Macedo, O Significado Oculto da Menina e Moça, editada em 1977 pela Morais Editores, onde o autor, numa análise fulgurante, apresenta a vertente cabalística do texto de Bernardim Ribeiro. Teresa Tudela consegue num poema curto desfraldar todas essas questões, com uma imagem vibrante: coloca a estrela, símbolo do povo judeu – em que os 12 lados demonstraram a disposição das 12 tribos de Israel durante sua jornada de 40 anos no deserto, após sua saída do Egipto em direcção à Terra de Israel – nas mãos de Bernardim, com as seis pontas orientadas para a dor do exílio:
Essa tristeza /esse exílio /da vida ampla em faixa estreita /obstinada /se calhar abriste a tua estrela de David /e desdobrou-se em ziguezague na mão /que a tinha /viste a tristeza inscrita numa ponta /e quando olhaste para a mão esquerda em simetria /abriste os dedos em estrela /tua /e julgaste /ver nela em espelho o exílio replicado /das outras cinco pontas /de David /Bernardim /é ainda certo o teu nome.
Sobressai na declamação o jogo de palavras no último verso, com o «é ainda certo» – ligando-se à característica oralizante da escrita de Bernardim –, que resvala para «é ainda (in)certo» com o que se reforça o saber incompleto que se tem do genial escritor do século XVI, ainda que se lhe seja mais desconhecida a vida do que a obra.
Nota: Bernardim Ribeiro (1481? 1545?) colaborou com Sá de Miranda no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, destacando-se pela genialidade das éclogas e da novela sentimental Menina e Moça, narrativa feminina de solidão e saudade onde se analisa minuciosamente o mundo interior, à luz do desengano, pessimismo e fatalismo. É sobretudo esta narrativa a geratriz da presente obra de Teresa Tudela.
T a Bernardim, Teresa Tudela; (livro e CD) Editorial Campo das Letras, Porto, Maio 2006
© Teresa Sá Couto
T a Bernardim, Teresa Tudela; (livro e CD) Editorial Campo das Letras, Porto, Maio 2006
© Teresa Sá Couto
(to Artur)
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