«Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.».
Estas são palavras de Gonçalo M. Tavares e estão contidas no seu livro «Jerusalém». Um livro preto sobre a noite humana. Um livro que vê tudo e sabe tudo de nós. Não por ser um "excluído", mas por ser a própria caixa onde se aninham os excluídos. E todos somos excluídos pelo que não confessamos: a dor, a loucura, o medo, a morte.
Prémio Ler/ Millenium BCP, “Jerusalém” é o terceiro livro preto de Gonçalo M. Tavares. Romance – ensaio, porquanto é construído com uma narrativa que levanta uma reflexão filosófica, é também um romance de personagens fechadas no medo, abertas na narrativa lúcida, feroz e vibrante, que nos aprisiona até à última página, libertando-nos na primeira página da nossa inquietação.
A cor e as ruas do medo e da dor
Seis personagens erram na noite fechada à felicidade. «De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive». Calcorreiam as ruas de uma cidade, ao mesmo tempo, tão distantes umas das outras, tão perto da própria loucura. Cada personagem é uma rua, um nervo de medo, e todas, à deriva na dor, compõem o espaço psicológico denso de um campo de concentração: a vida.
Mylia, Ernst e Kaas Busbeck – mãe, pai e filho – constituem o trio dos, à partida, excluídos. A mulher e o homem, por carregarem o medo do passado de loucos isolados no hospício de Georg Rosenberg, e o medo de ainda o parecerem. O rapaz porque foi por eles concebido nesse tempo de loucura, atestada pela medicina dos homens sãos, produto de adultério, e criado por um pai que não o concebeu.
A narrativa abre e fecha com MYlia. Ela vagueia, às quatro da manhã, com «os pés distantes dos sapatos», à procura de um deus qualquer, que se lhe nega, à procura de uma igreja, que está fechada. Ela está dentro da caixa. Sempre o esteve e por isso nunca se espantou com as fotografias do horror, de cadáveres amontoados de um campo de concentração, que o ex-marido estudava, horrorizado.
Ernst é amigo e ex-amante de Mylia. Corre na noite para a socorrer, e o som desconexo dos sapatos, que lhe transportam o corpo desordenado, alcança uma rua que finda numa igreja fechada.
Kaas Busbeck tem no corpo o castigo do adultério dos pais; a sua deficiência física é «um incómodo, uma espessura agarrada a si», uma fragilidade que lhe usurpa a vida. Vagueia na noite à procura daquele que o perfilhou: Theodor. Médico promissor na investigação de saúde mental e ex-marido de Mylia, Theodor estudou durante décadas uma fórmula que resumisse «os efeitos do horror», para o prever e prevenir, para encontrar as causas da maldade que existe sem o medo. Esqueceu-se, porém, que o medo leva à maldade, e ela estava perto de si. Anda na rua com genitais intumescidos à procura de um bordel, de terapêutica física, de sexo puro, e pondera nessa sua decadência, nessa «eficácia negativa, tempo de não humanidade, tempo onde não se constrói. Se fôssemos só isto, o que eu sou neste momento, a caminhar apressado com o pénis duro, desejando encontrar rapidamente uma mulher, se fôssemos só isto seríamos os cães dos nossos cães.».
Hanna é a prostituta de «olhar fundamental, de cientista, de quem está de fora a ver o que sucede às coisas». Ela «conhecia o intervalo entre a sedução e a repulsa, essa habilidade perversa – de puxar primeiro para depois empurrar». Ela está na rua em direcção ao desvario de um amigo que se fecha em casa. Ela liga Theodor á sua própria tragédia. Ela é a amiga do homem que lhe matará o filho perfilhado.
Hinnerk é o amigo de Hanna que vive os dias «com rigor de patrulha, numa existência observada e observador de si próprio», acompanhado pelo medo e a tensão, «a única maneira de se sentir seguro.». Mas o medo descontrola-o, fá-lo sentir-se cada vez mais ameaçado, e a noite é o tempo e a forma da sua loucura. Hinnerk é o mensageiro da morte condenado à morte. A sua loucura encontra, na rua negra, o rapaz, Kas Busbeck. E a loucura de Mylia encontra-o a ele.
O corpo, lugar de inscrição da dor
A reflexão sobre o corpo como lugar onde a dor e a loucura se inscrevem percorre toda a narrativa e irrompe de todas as personagens. Mylia, gravemente doente, com «um ruído no centro do corpo, no miolo» vê na enfermidade uma «forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer». Sentindo o cunho da morte nessa «dor larga, que não era um ponto», exercita os sentidos: «Magra, não usava os dedos para ninharias»; «os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte».
A noite da infelicidade que “deturpa as cores, quando não as elimina” pode ser riscada com o essencial, mesmo que ele seja subversivo: «o giz dela, por sorte, era branco, obscenamente branco» e é com ele que lança o grito na parede negra da igreja fechada. «Sabe-o, sorri e escreve FOME.».
Eduardo Lourenço diz que o autor de “Jerusalém” «Chegou para ficar num espaço só seu». Um espaço só seu, eloquentemente partilhado connosco, seus leitores com FOME desta literatura. “Jerusalém” é um livro que nos escancara a alma ou é uma alma que abre e ilumina-nos as páginas intestinas do nosso livro, até aqui, dissimulado. Certamente por medo!
Jerusalém, Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, 2005
© Teresa Sá Couto
* Ver AQUI informação sobre a Ópera Jerusalém, na Culturgest;
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