quarta-feira, 12 de agosto de 2009

As perguntas de Neruda

Não deixa de ser curiosamente pertinente que a obra póstuma de Pablo Neruda se intitule O Livro das Perguntas, ele que passou a vida a interpelar o mundo com a palavra de pendor épico. «Como tiveram as uvas conhecimento / da propaganda do cacho?», questiona o poeta chileno numa metáfora que já deu o titulo ao As Uvas e o Vento, esse canto de propagação da esperança, editado entre nós há dois anos, e que ressurge, profícuo, em perguntas orvalhadas: «É verdade que as esperanças / devem ser regadas com orvalho?».

É um livro pequeno, editado há alguns meses, com 74 poemas curtos, e como todos os livros pequenos de grandes autores demora muito tempo a ler. Na nossa sensibilidade e na experiência dos dias, encontramos a resposta para algumas perguntas; outras são questões de retórica; outras, ainda, têm o peso do aforismo; todas têm a capacidade de nos deixar suspensos no seu eco. A tradução deste pequeno desassossego está entregue ao poeta e tradutor Albano Martins, que há muito traduz para a Campo das Letras as obras de Neruda, incluindo o incontornável Canto Geral.

«Há loucura maior na vida / que ter nome de Pablo Neruda?», «O que dirão da minha poesia / os que não tocaram o meu sangue?», «Posso perguntar ao meu livro / se fui eu que o escrevi?», pergunta Neruda sobre ele próprio, neste livro que já foi por muitos enunciado como o seu “testamento”, nomeação que considero ser exagerada já que temos de nos deter na valia da sua obra que, aliás, deu ao autor o Prémio Nobel da Literatura em 1971; o «Livro das Perguntas» é, indubitavelmente, uma síntese originalíssima e feita com mestria do seu programa literário. Humor e acidez crítica, companheirismo e cumplicidade, perda e fé são os trajectos centrais das inquirições.

Tingidos de misticismo, os elementos da natureza apoiam a reflexão sobre a condição existencial:

«Onde há-de viver um cego / a quem as abelhas perseguem?»
«Já contaram o ouro que há / no território do milho?»
«Se o amarelo acabar / com que havemos de fazer o pão?»
«As lágrimas que não se choram /esperam em pequenos lagos? / Ou serão rios invisíveis / que correm para a tristeza?»
«Porque se suicidam as folhas/ quando se tornam amarelas?»
«Sabes que reflexões / rumina a terra no Outono?»
«Porque é que a agricultura se ri / do pálido pranto do céu?»

Fortíssima, como Neruda nos habitou, a sua missão de denúncia política corre com raiva, ironia, solidariedade e desafio de tomada de consciência, semente da actuação:

«E sentar o triste Nixon / com o rabo sobre a braseira? / Queimando-o com fogo lento / de napalm norte-americano?
«Porque é que na Bolívia não amanhece / desde a noite de Guevara? / E o seu coração assassinado / procura ali os assassinos?»
«É verdade que sobre a minha pátria / voa de noite um condor negro?»
«É mau viver sem inferno: / não podemos reconstruí-lo?»
«Como conseguiu a liberdade / a bicicleta abandonada?»
«De que se ri a melancia / quando estão a assassiná-la?»
«Quando o preso pensa na luz /ela é a mesma que te ilumina?»
«Porque é tão dura a doçura / do coração da cereja? / É porque tem que morrer / ou porque tem de continuar?»
«Onde encontrar um sino / que soe dentro dos teus sonhos?»
«As lembranças dos pobres/ das aldeias juntam-se todas?»


Por consequência, o artífice da palavra feita arma questiona o seu próprio ofício e o preço a pagar por ele:

«Porque é que me picam as pulgas / e os sargentos literários?»
«Porque rolo sem ter rodas / e voo sem asas nem penas, / e o que me deu para emigrar / se os meus ossos vivem no Chile?»
«Foi onde me perderam que por fim / consegui encontrar-me?»
«Porque é que nos tempos sombrios / se escreve com tinta invisível?»


Livro das Perguntas, Pablo Neruda; tradução de Albano Martins; Campo das Letras, 2008

© Teresa Sá Couto

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