
O «panteão espiritual» do Sul começa com Ibn Amar, «poeta do Al-Garb», corre o ano de 1086. Narrado na primeira pessoa, o poeta, escravo e prisioneiro de guerra, encarcerado numa cela em Sevilha pelas mãos de Al-Mutamid, antes seu amigo, revê a sua terra, a sua vida, as escolhas e os caminhos que essas escolhas ditaram. Na claustrofobia do cativeiro, relembra traições, intrigas, invejas, ambições que «vão minando e corroendo os carácteres mais puros, como a traça faz no mais belo e rico tecido». Porém, o tecido da sua alma mantém incólume o ouro: enquanto espera pelo futuro, desenvolve a sua poética «depurada de toda a vileza e traição» e, com ela, tece a sua imortalidade.
Segue-se o ano de 1536 para se testemunhar o último suspiro de Garcia de Resende, o «poeta-amante que preferia a morte a viver sem a sua amada», que escreveu para o futuro a Cultura e a História portuguesas num legado abraçado, continuado e divulgado pelo poeta do mundo, que seria Luís de Camões. Ainda no século XVI, surge o eterno canto do rouxinol que, místico, canta a saudade e a alma exausta: Bernardim Ribeiro
Entra-se em 1859 com o canto de ternura de João de Deus. Puro na poesia, zeloso no ensino das primeiras letras, o autor da Cartilha Maternal cumpria a sua missão de corrente na lapidação da cultura portuguesa. Ainda no século XIX irrompe o «poeta, dândi, cronista e panfletário», o singular Fialho de Almeida.
O século XX traz a infeliz que vagueou pela vida «perdida nos seus devaneios»: Florbela Espanca. É o conto mais longo da série e recria pungentemente a vida triste da «Princesa desalento», os amores infelizes, a imaturidade afectiva, a má reputação, as tentativas de suicídio até ao consumado.
No sentido inverso do desprezo social surge o popular e amado António Aleixo, o ti Toino, com a sua vida de miséria que albergava a riqueza da alma. E corre assim o texto: «António sente-se feliz com o apoio do povo, apesar da doença que o vai consumindo, das forças que se esvaem, como a água através da peneira …Desconfia que o final se aproxima a passos largos. É nisto que vai meditando, a caminho do hospital, quase deitado no chão da carroça do seu vizinho, para ver se adormece a dor e a agonia. Todavia, não sabe ainda que quando deixar a vida, é nessas quadras soltas que a sua alma continuará viva, permanecerá de geração em geração, a ensinar a profunda e sincera filosofia da vida.».
Também Emiliano, penúltimo inscrito neste hino de Dora Nunes Gago, está quase a abalar da vida. O médico e «poeta da luz e da cor» conhece a dor da perda, pois está-lhe sulcada na existência. «Sentado no seu cadeirão, com uma folha de papel poisada no colo, toda a dor, o sofrimento, mas também as cores pujantes da natureza se convertiam em poesia.».
O canto finda com o esplendor da vida de Teixeira Gomes, sétimo Presidente da República (entre 1923-25), falecido a 18 de Outubro de 1941, na Argélia. Desde cedo conviveu com escritores, entre eles João de Deus e Fialho de Almeida. É no retiro argelino que produz muitas das suas obras reveladoras de um humanista preocupado com a justiça e seduzido pela sensualidade. Mas é também com este final que a autora dos nove contos abre as portas para o futuro, num claro desafio: não nos esquecermos dos que puseram o seu sangue no idioma, que é o nosso, é fazermos a parte que nos cabe, é garantir-lhes a imortalidade.
A Sul da Escrita, Dora Nunes Gago, Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro de 2007
© Teresa Sá Couto
página de Dora Gago, AQUI
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