terça-feira, 4 de agosto de 2009

Canto do Sul

Galardoado com o Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, A sul da escrita de Dora Nunes Gago, de 2007, faz jus ao patrono do Prémio: a escrita depurada e delicada é um hino à criação literária de autores nascidos no sul de Portugal, ao mesmo tempo que colhe a alma da terra exibindo-lhe as texturas, as melodias e os cheiros. Conto após conto, o leitor é envolvido em sinestesias que o catapultam para a única terra possível: a terra das casas brancas semeadas na planície tendo por tecto um azul infinito, das badaladas lânguidas dos sinos, do «canto trinado das cigarras», do «odor amarelecido do feno aquecido pelo sol quente», do amarelo odorífico das mimosas, do «cheiro forte da terra molhada e criadora».

O «panteão espiritual» do Sul começa com Ibn Amar, «poeta do Al-Garb», corre o ano de 1086. Narrado na primeira pessoa, o poeta, escravo e prisioneiro de guerra, encarcerado numa cela em Sevilha pelas mãos de Al-Mutamid, antes seu amigo, revê a sua terra, a sua vida, as escolhas e os caminhos que essas escolhas ditaram. Na claustrofobia do cativeiro, relembra traições, intrigas, invejas, ambições que «vão minando e corroendo os carácteres mais puros, como a traça faz no mais belo e rico tecido». Porém, o tecido da sua alma mantém incólume o ouro: enquanto espera pelo futuro, desenvolve a sua poética «depurada de toda a vileza e traição» e, com ela, tece a sua imortalidade.

Segue-se o ano de 1536 para se testemunhar o último suspiro de Garcia de Resende, o «poeta-amante que preferia a morte a viver sem a sua amada», que escreveu para o futuro a Cultura e a História portuguesas num legado abraçado, continuado e divulgado pelo poeta do mundo, que seria Luís de Camões. Ainda no século XVI, surge o eterno canto do rouxinol que, místico, canta a saudade e a alma exausta: Bernardim Ribeiro

Entra-se em 1859 com o canto de ternura de João de Deus. Puro na poesia, zeloso no ensino das primeiras letras, o autor da Cartilha Maternal cumpria a sua missão de corrente na lapidação da cultura portuguesa. Ainda no século XIX irrompe o «poeta, dândi, cronista e panfletário», o singular Fialho de Almeida.

O século XX traz a infeliz que vagueou pela vida «perdida nos seus devaneios»: Florbela Espanca. É o conto mais longo da série e recria pungentemente a vida triste da «Princesa desalento», os amores infelizes, a imaturidade afectiva, a má reputação, as tentativas de suicídio até ao consumado.

No sentido inverso do desprezo social surge o popular e amado António Aleixo, o ti Toino, com a sua vida de miséria que albergava a riqueza da alma. E corre assim o texto: «António sente-se feliz com o apoio do povo, apesar da doença que o vai consumindo, das forças que se esvaem, como a água através da peneira …Desconfia que o final se aproxima a passos largos. É nisto que vai meditando, a caminho do hospital, quase deitado no chão da carroça do seu vizinho, para ver se adormece a dor e a agonia. Todavia, não sabe ainda que quando deixar a vida, é nessas quadras soltas que a sua alma continuará viva, permanecerá de geração em geração, a ensinar a profunda e sincera filosofia da vida.».

Também Emiliano, penúltimo inscrito neste hino de Dora Nunes Gago, está quase a abalar da vida. O médico e «poeta da luz e da cor» conhece a dor da perda, pois está-lhe sulcada na existência. «Sentado no seu cadeirão, com uma folha de papel poisada no colo, toda a dor, o sofrimento, mas também as cores pujantes da natureza se convertiam em poesia.».

O canto finda com o esplendor da vida de Teixeira Gomes, sétimo Presidente da República (entre 1923-25), falecido a 18 de Outubro de 1941, na Argélia. Desde cedo conviveu com escritores, entre eles João de Deus e Fialho de Almeida. É no retiro argelino que produz muitas das suas obras reveladoras de um humanista preocupado com a justiça e seduzido pela sensualidade. Mas é também com este final que a autora dos nove contos abre as portas para o futuro, num claro desafio: não nos esquecermos dos que puseram o seu sangue no idioma, que é o nosso, é fazermos a parte que nos cabe, é garantir-lhes a imortalidade.

A Sul da Escrita, Dora Nunes Gago, Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro de 2007


© Teresa Sá Couto


página de Dora Gago, AQUI

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