domingo, 16 de novembro de 2008

«A Língua Posta a Salvo», Elias Canetti


Texto editado no site Orgia Literária em 07/11/2008
Não é um romance, mas lê-se como se o fosse. Tampouco é um ensaio, mas apresenta um problema e explana-o argumentativamente incitando-nos à reflexão. «A Língua Posta a Salvo» de Elias Canetti – no original, Die gerettete Zunge – Geschichte einer Jugend – é a primeira de três parte de uma narrativa autobiográfica, publicada entre 1977 e 1985, que acaba de chegar às livrarias com tradução de Maria Hermínia Brandão e Chancela da Campo das Letras.

Prémio Nobel da Literatura em 1981, Elias Canetti (1905-1994) foi sociólogo, ensaísta, romancista e dramaturgo. Búlgaro, filho de um comerciante judeu sefardita, construiu em língua alemã, a sua língua da paixão, uma obra literária gizada no seu tempo, vigorosa, inquiridora e com reconhecido poder artístico. Nas 309 páginas deste «A Língua Posta a Salvo», encontramos aquelas características, para uma leitura a um mesmo tempo intensa e fluida, com desafios intelectuais actualíssimos, como é apanágio de Elias Canetti.
O grande enfoque vai para a questão da língua enquanto objecto em que se inscreve o poder, referido por Roland Barthes; trata-se, aqui, da apropriação da linguagem por parte da criança, e do papel da língua enquanto fecundadora da personalidade e fundadora de uma consciência que definirá o homem adulto na relação consigo mesmo e com o mundo. E este tema do poder das palavras no indivíduo perpassa a obra de Elias Canetti, fulgurante no romance Auto de Fé, com a pungente personagem Kien, um erudito inadaptado social que vive imerso em livros sem os quais não consegue viver, romance que li numa tradução francesa, há demasiados anos, mas do qual guardo indemnes o fascínio e a inquietação.

A linha vermelha que escreve o mundo

«A minha lembrança mais antiga está pincelada de vermelho». Assim se inicia a narração que segue cronologicamente os acontecimentos, de 1905 a 1921, desde Rustchuk, dois anos em Manchester, três anos em Viena e os restantes em Zurique. Fazendo a apologia da Língua, como uma longa linha sanguínea escultora da existência, Elias Canetti mostra a criança, numa primeira fase, a que chamarei fase do espanto inicial – a da descoberta da palavra, a do encontro da criança com a sua voz interior e a nova capacidade de agir sobre o real –, seguindo-se a fase da maturação da palavra, a do nascimento de uma consciência que, como uma impressão digital interna, será uma marca distintiva do indivíduo.

Com recurso ao seu exemplo, Elias Canetti constrói de forma surpreendente a criança que procura nas palavras a libertação do que se lhe amotina interiormente, e encontra no processo sentimentos novos e extremos, desde ternura exacerbada, a ódio assassino e rancor por lhe sonegarem a magia da língua: quando, na lembrança mais remota, aos dois anos de idade, o amante da ama ameaça cortar-lhe a língua com um canivete caso ele os denuncie – o que, avento, terá inspirado Margarida Baldaia na ilustração da capa, onde se vê um canivete encarnado a interromper uma linha interminável da mesma cor sanguínea –; quando a sua prima e companheira de brincadeira o impede de ver os seus cadernos, o que despoleta nele um ódio assassino que o faz, aos cinco anos, pegar num machado para a matar – a mesma amiga que, em retaliação, o empurra para uma caldeira com água a ferver, o que lhe valeu estar entre a vida e a morte; as narrativas que inventa sobre as figuras dos tapetes, diálogos que teimosamente continua em silêncio, depois de ter aquela actividade interdita; quando, aos oito anos, a mãe lhe esconde o livro pelo qual lhe dá aulas de alemão, livro que ela retinha «como se fosse um segredo», e que lhe provoca um rancor inaudito, a par do sofrimento perante a aprendizagem daquela língua feiticeira, «língua-mãe implantada tardiamente e com dores a sério», dito assim: «Não tinha qualquer livro que me servisse de controle, ela recusava-mo, teimosa e desapiedadamente, sabendo perfeitamente a afeição que eu sentia pelos livros e como tudo teria sido muito mais fácil com um livro. (…) Nem reparava que eu, com a aflição, andava a comer pouco. O terror em que eu vivia, achava-o ela pedagógico.».

Todavia, seria a mãe, a quem Elias Canetti dedica um amor desmesurado, a grande responsável por lhe atiçar o fogo das palavras, e seria ela a promotora das grandes mudanças na sua vida de adolescente, que o deixavam furioso, mas que o robusteceram, factos relatadas com a crueza, plasticidade e sentido analítico só possíveis a um grande escritor e observador humano. Empenhada na melhor educação para os filhos, a quem fez aprender várias línguas, lia-lhe e explicava-lhe grandes narrativas. As palavras desencadeavam outros espantos e a criança seguia-as já com os instrumentos para as maturar. E assim surgem, na narrativa autobiográfica, palavras sobre palavras lidas – Shakespeare, Dante, Homero, Schiller, Marx, Lenine, entre muitos outros –, escutadas, revolvidas, capazes de operar novas vivências, que a escola – o grande palco dos vários conhecimentos – com a embriaguês e excitação do contacto com a diversidade humana, amplia. Propõe-se, aqui, uma reflexão sobre «a escola do conhecimento do ser humano», uma reflexão actualíssima e urgente sobre qual deve ser o papel desta instituição quando se querem formar, plenamente, indivíduos.

Aos dezasseis anos, Elias Canetti saía de Zurique, sentindo-se expulso do paraíso onde foi feliz. Mas a língua estava já posta a salvo e ele transportava uma consciência que se formara num mosaico de descriminações, tensões sociais e políticas do tempo instável de várias guerras; uma consciência que viria a estudar, denunciar, inquirir o pensamento e as acções dos homens, um poder que só mais tarde confirmou: «A verdade é que eu, como o primeiro dos homens, ao ser expulso do Paraíso, só então nasci.».

Sobre esse “nascimento” falarão os próximos dois volumes desta longa narrativa autobiográfica, que deverão estar disponíveis no segundo semestre de 2009, em previsões da Editora. Pela mostra deste primeiro tomo, aguardam-se os próximos com mal disfarçada impaciência.


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Anónimo disse...

Canetti - do pouco que conheço dele - tem uma coisa que aprecio: recorrer à memória para recriar situações e contextos que dp ganham novas dimensões transtemporais. Com isso aproveitou para recriar quadros históricos ajudando tb a compreender melhor a sociedade, nesse sentido foi um escritor-sociólogo. Ser escritor por escritor é pouco original. Freud tb foi escritor, mas acima de tudo foi um psiquiatra e até um "filósofo do cérebro" e hje ainda andamos todos com as pulsões que ele enunciou...

Penso q é um escritor pouco conhecido entre nós..Mas este foi um sinal para inverter essa tendência. Parabéns!!

Peter

Teresa disse...

É pouco conhecido, sim, Peter. E é pena.Pode ser que, depois desta Autobiografia, a Editora traga para Portugal outros títulos.

Muito Obrigada pela constante atenção aos meus textos.
Bjinhos
TSC