quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Requiem para D. Quixote, Dennis McShade

Já disponível nas livrarias, Requiem para D.Quixote é o segundo andamento da magistral orquestração de Peter Maynard, o assassino profissional criado por Dennis McShade, autor sombra que escondeu e revelou Dinis Machado, o engenhoso estratega de tudo isto, já lá vão 40 anos. Depois da sua edição em 1967 e da reedição pelo Círculo de Leitores em 1987, Requiem para D.Quixote desapareceu do contacto com o público português, dito assim, pois o livro foi editado na Roménia em 1991, com o título Contractul Crimei.

Depois de Mão Direita do Diabo reeditado em Junho último, este Requiem para D.Quixote – título enigmático para um policial negro – é um hino à «vitória do espírito sobre a matéria», uma homenagem aos sonhadores mortos e aos impotentes na operacionalização dos seus sonhos, e vem consubstanciar o renascimento de Dinis Machado, quando passa cerca de um mês da sua morte (a três de Outubro). E, convenhamos, parece que Dinis continua a jogar connosco o jogo que criou: o jogo da ocultação e da revelação, da verdade e da máscara, da vida e da morte, o jogo da cabra-cega da existência humana.

Escreveu Dinis Machado, enquanto editor dos livros de McShade, em nota que acompanha esta reedição, que o assassino profissional Peter Maynard é a tese e a antítese do autor McShade, porquanto «elogia apenas o homem em acção e pela acção» e, por outro lado, imprime-lhe «os silêncios», «onde há a fala alta de um orador sagrado, o sussurro de uma prece e tudo aquilo que está para lá da franja do mar». Uma dialéctica que faiscou no título anterior e que atinge irradiação máxima neste segundo romance propenso a apurar a psicologia maynardiana. Esta mesma dialéctica configura-se no claro-escuro da ilustração – novamente uma magnífica capa de João Fazenda – que interpreta Maynard com a Beretta, com o perfil humano, o silenciador e a mão direita a negro, em contraste, mas em sinergia com o branco da Beretta e da mão esquerda que coloca o silenciador.

É, ainda, este movimento dialéctico que está na génese destes policiais, tornando-os únicos. A par das urdiduras frenéticas condensadas num tempo muito curto, industriosas, eximiamente construídas e matizadas de humor imbatível, surge o tempo largo da reflexão sobre a condição existencial; é Maynard que, enquanto prepara a sua Beretta olha pela janela e, como se se olhasse ao espelho, observa as pessoas com pressa «a construir as pirâmides»; é Maynard, numa pausa da sua pressa, a construir a sua pirâmide com o vértice bem firmado no «coração secreto da sensibilidade»; é, afinal, um escritor português que, através de um assassino profissional, procura um poema.

Munições para um poema
«A intuição dos curiosos é como a imaginação dos poetas: aparece uma ideia como aparece um verso. Depois, é preciso procurar o poema», diz Maynard dando-nos pistas sobre a construção narrativa, o metódico, não sagaz, mas intuitivo, como faz questão de corrigir, de uma intuição que é «como o bordão do cego: toca nos objectos e transmite-os». Depois, o processo até é simples, genialmente simples, e temos de concordar com Maynard quando diz que Ravel tem razão: «Fez o Bolero com uma repetição incessante de notas, só os andamentos é que mudam». Assim é a vida: «as notas são sempre as mesmas. Só os andamentos é que mudam. E o resto, é um problema de orquestração».

Nesta nova orquestração, Peter Maynard tem para resolver um caso de Caim e Abel. Para reconquistar a sua liberdade profissional – após acontecimentos relatados no «Mão Direita do Diabo» – aceita do Sindicato do crime organizado um contrato para executar Big Shelley, um poderoso chefe da Máfia. Se a tarefa lhe desagrada por ver nela uma imposição e «um ar político», torna-se-lhe ainda mais difícil porque o marcado para morrer tem nome de poeta; é que, se Maynard é um profissional que gosta de «salpicar a tarefa» com «um certo sentido de justiça», também é certo que honra todos os contratos. No momento em que se deveria dar a execução, Maynard – que foi escolhido pela sua eficiência – faz uma pausa e enceta com a sua vítima um diálogo de horas, motivado por um exemplar do El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha de Cervantes, que se encontra aberto sobre uma mesa. Trata-se da última conversa entre dois solitários que partilham a ideia da vanidade dos triunfos, da ilusão das conquistas e amor pela leitura dos clássicos.

Repondo-se a acção, o «mão direita do diabo» recebe um contrato enquanto «mão esquerda de Deus», já que, antes de ser executado, Shelley incumbe-o de vingar a sua morte. Definitivamente, Deus escreve direito por linhas tortas e Maynard tem neste novo contrato a justificação para a sua missão de assassino justo, que lê as «obras completas de Kafka» e que ao som de Beethoven entende «que é sempre a milésima vez de recomeçar». E recomeça sempre nos dois movimentos: o impaciente na acção profissional e o paciente, sem pressas, nas viagens da sua alma errante por campos dentro de si onde «pega numa flor e surge a arma, a arma já é a mão, os dedos são balas». Esta é a sua desdita. É fácil visualizar-se Maynard enrolado «como um caracol», em posição fetal, como num retorno à inocência, ao mesmo tempo que se debate com as suas vozes, campainhas e besouros, que o alertam para a trama à sua volta.

Por isso, com a maleta do silenciador, Maynard «passa por caixeiro-viajante», um cavaleiro andante de sonhos amarrados numa caixa onde estão Olga e «a nostalgia de um casamento», «uma vaga nostalgia de casa-mulher-filhos-prenda no dia do aniversário-andar a tarde inteira ao sol sem ter morrido». «Água, pão, amizade e amor. Procuramos outras coisas, mas estes são os quatro pontos cardeais», diz-nos o texto. E a Maynard ocorre-lhe que a verdade da vida até pode ser simples: «A verdade é capaz de ser só isto. Estou nu, deitado na cama, e Olga está nua, a meu lado».

Todavia, a Maynard não lhe basta tirar a máscara e pôr-se nu. Ele tem ainda o seu «inefável tribunal» onde é o acusado, o juiz, o advogado o júri e o público. Adivinha-se o desfecho do seu processo com a sua consciência relatado no monólogo maynardiano: «vais considerar-te culpado, mas tens a atenuante de tal angústia, e isso é até um bocado aristocrático, fica-te muito bem, Beethoven para a esquerda, Proust para a direita, e ainda assim uma grande margem de melancolia, e depois a certeza de que um homem só é verdadeiramente com a sua solidão. Deixem-no passar, diz o povo, deixem-no passar, porque ele sofre muito e é grande, olha o sofrimento bem nos olhos e tem a coragem de continuar a viver. És um narciso da merda, Maynard. As piruetas que tu fazes para demonstrares a ti próprio que não és pior do que os outros.».

Dinis Machado recebeu vinte contos de réis para dar corpo a três policiais. Porém, os pequenos livros de bolso surgiam empapados de mar onde navegava um herói de barro, prisioneiro das suas fraquezas, como qualquer um de nós. Terá sido este o segredo que levou os leitores a considerar mítica esta trilogia; o público de Maynard espera, agora, pelo último andamento, o Mulher e Arma com Guitarra Espanhola, a sair no próximo ano.

*Nota de agradecimento ao escritor José Xavier Ezequiel, mentor deste projecto de reedição da Assírio&Alvim, por me ter disponibilizado a capa da edição romena deste Requiem para D. Quixote
Nota: este texto foi editado na Orgia Literária, dia 21.11.08
© Teresa Sá Couto

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