Incontornável: falar de Natália Correia é entrar em revoada. Mulher de voz diversa, rebelde e intelectualmente avassaladora, de «Espáduas brancas palpitantes:/ asas no exílio dum corpo», «Por vezes fêmea. Por vezes monja./Conforme a noite. Conforme o dia», cumpriu-se na palavra e pela palavra, estendida em poesia, romance, teatro, ensaio, memórias, relatos de viagem, registando sempre a peculiar forma de viver, indignada e insubmissa.
«Além de mim age um ignotus que ainda estou para saber o que é», dizia Natália para nos explicar, assim inexplicavelmente, a natalidade da sua criação genial. Concretamente, sabemo-la a feiticeira que se adiantou ao tempo e que continua a deslumbrar-nos com a sua verve original e inconfundível que nos atira na odisseia da existência.
O livro de Natália «Contos Inéditos e Crónicas de Viagem» é uma exibição, mais uma, da força superior e da escrita maior da autora. Prefaciado soberanamente por Zheto Cunha Gonçalves, é o 3º volume da colecção, por ele dirigida, que colige a obra jornalística de Natália Correia jamais editada em livro. Uma surpresa imperdível.
O livro de inéditos, editado pela Parceria A.M.Pereira, está dividido em duas partes, com textos escritos entre 1948 e 1985 e dispostos de forma cronológica. A primeira parte contém a estupenda lavra ficcional de Natália, em sete contos, e a segunda, mais de cariz jornalístico, traz-nos encontros com diversas personalidades, nacionais e estrangeiras (Norton de Matos ou Kadafi, por exemplo), além de narrativas de viagens. Contudo, em todos os textos, irrompe a surpresa narrativa, rutila a poesia, produto de um ministério de assombro literário; todos os textos nos dão «notícias do homem», escritos com «êxtases e intemperanças do sentimento», segundo palavras de Natália, agora relembradas por Zheto Cunha Gonçalves que, no prefácio, contextualiza a autora e dá-nos uma leitura de cada um dos contos inéditos.
Defende o prefaciador, e não poderíamos concordar mais, que «uma fortíssima carga poética subjaz e alimenta, da primeira à ultima linha, a par da ironia, ora branca como a magia, ora negra como o mais negro, cáustico e corrosivo humor, a narração e a factura desta escrita – nua e límpida como a desobediência que advém da rebeldia e da paixão, do encantamento do mundo e da intransigência para com a estupidez que é a falsificação da vida submetida às leis de moralismos utilitários.». A factura paga por Natália por deter esta inexcedível força da natureza – e que por se sentir um ser livre interveio conforme a sua consciência, sempre com coragem e frontalidade –, agrilhoou-a no epíteto de «excêntrica», do qual jamais se liberta, e que fez com que se desprezasse a sua criação artística. À adversidade do seu tempo, Natália responde com a ética de se inventar constantemente, e ora se rebela e se agita, ora se recolhe e medita, sempre produzindo palavras alquímicas.
«Feliz» é o título do primeiro conto e da personagem que ele edifica: uma mulher, «a idiota da região», que «nascera aleijadinha do juízo» e ostentava sempre um sorriso no rosto. Sozinha no mundo, Feliz encontra em Bento Gaiato o «único amigo, o único animal humano que a acariciara» e, mesmo sendo «coisa ruim» que se aproveita dela, Feliz, numa prova de gratidão assume o assassinato praticado pelo seu Bento. A crítica corrosiva «do português médio» irrompe em «Filme Tragicómico da Vida nas Praias em 3 Partes» com «heróicas virgens de bairro», «aves tontas» com ambições das «stars hollywoodenses» e de «um possível marido». Revelam-se «os títeres» de sempre, traçam-se retratos vibrantes da «urbe trágica e ridícula que se petrifica numa lágrima de Charlot».
Repletos de desamparo e desenraizamento, os contos «Um Homem Enamorado do Outono» e «Esplanada» trazem vozes de pessoas que «não são mais do que solidão», loucura e demência, e desatam-nos emoções antiquíssimas, fulgurações de sangue intemporais: «a música sai dum violino roído pelo tempo e o cego do violino é apenas mais uma sombra dessa tarde que se esvai num sopro de amargura.» Estupendamente inusitados, ou não fossem natalianos, surgem os contos «Barbo», «O Espelho de Anaita» e «Memórias de Uma Tia Tonta», este último, com um monólogo da personagem dirigido a Jesus, uma demência hilariante, construída com singular engenho narrativo.
As «Crónicas de Viagem», o conjunto de apontamentos jornalísticos, não perdem o arroubo da escrita dos contos, enleando-nos no deslumbramento da leitura. Assim é quando regista a sua viagem turística ao reduto do pintor El Greco e, como ele, arranca à sua arte «as expressões mais vivas e originais».
Na Líbia, “descasca” a imagem mítica de Moammar Kaddafi, o «controverso ungido da Unidade Árabe», em diversos pontos: o puritano, o misógino, o fanático, e, quanto «o mito se faz carne», a figura carismática daquele líder. Regista a sua visita a Moscovo, à «Mãe heroína» em plena «Perestroika».
Em Londres, numa marcha anti-atómica, encontra-se com Bertrand Russel, «o pacifista mais teimoso do mundo» um homem «radicalmente livre» e parece mostrar-nos no seu próprio reflexo: «a liberdade não é o privilégio de nenhuma ideologia mas antes aquilo que permite ao homem denunciar as pseudo-liberdades com que as ideologias nos atraem.».
Em Ponte de Lima, «numa viagem recreativa», descobre a eterna juventude do General Norton de Matos que mostrou «alta impetuosidade patriótica, que galvaniza o mais céptico apátrida », numa conversa «em que as horas rolaram nas fulgurações do espírito jovem».
Campos de ouro… muita terra… campos lilases… muita terra… Aldeias cenográficas de peças realistas com um toque Iorquiano… tão realistas que chegam a ser irreais… Homens atarracados que descobriram a atitude que convém à situação humana de estar… Estar… à espera de quê? (…) O humor que perpassa como uma aragem neste mundo ardente e estático, responde: "À espera de nada. À espera apenas… Acaso não é a existência, em toda a sua gama humílima e grandiosa, um tecido infinito de compassos de espera?".
Natália Correia, Contos Inéditos e crónicas de viagem; Editora Parceria A.M.Pereira, Lisboa 2005
© Teresa Sá Couto
8 comentários:
Magnífico!
Você também é dessas, sem o alvoroço da Natália mas, e por isso mais surpresa, uma força da natureza.
Luís
Dia internacional da Mulher.
Um excelente dia para a Teresa nos falar de Natália Correia, mulher muito à frente do seu tempo. Excelente poeta e sobretudo, Mulher sem papas na língua.Tive o privilégio de a conhecer e ainda hoje ,quando tenho notícias de certos desmandos por aí praticados,na política,na economia, nas relações entre as pessoas, parece-me ouvir a sua voz vibrante num comentário certeiro, esmagando os medíocres com a sua ironia.
Muito obrigada Teresa, por nos falar da Natália,precisamente hoje. Vamos lê-la e esquecer a mediocridade que anda à solta.
Um grande abraço.
Nocturna
Obrigada pela visita, Luís. Imagino o que a Natália Correia passou: eu, mesmo sem alarido, conheço o preço de dizer o que se pensa ;)))))))))))))
Um abraço
Teresa
Olá Nocturna. A ideia foi precisamente essa ;). Também me aflige a mediocridade, sobretudo aquela que tem ganas de "excelente coisa"....
Beijinhos
Teresa
Olá Teresa,
Muito Obrigada pela partilha. Eis mais um livro que gostava de ler e ter. Grande mulher, a Natália Correia. De uma inteligência e lucidez belíssimas.
Felizmente ainda tive a oportunidade de a conhecer no final da minha adolescência, no seu Botequim. Memorável, tudo o que ouvi e vi.
Beijinhos e obrigada,
Sónia
Olá Sónia, agora também aqui. Gostei ;)) Obrigada!!
Tanta falta nos fazem mulheres como Natália para pôr o marasmo cultural de pernas para o ar!!
Beijinhos
Teresa
Então e os escolhos? Já não és utópica? :)
bjs
hb
Olá Hugo
Os escolhos continuam, também a utopia. Mas como o meu retrato é tão vasto, vou acrescentando fragmentos... :)))))
Bjinhos
Teresa
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