quarta-feira, 3 de junho de 2009

Feitiços e maldições de valter

Mariana Alcoforado urdia o desamor no cárcere religioso: «picava bonecos com cara de homem, e queimava-os no forno onde fazia os assados. (…)à noite, também sem mais nada, mariana levantava-se sonâmbula e convivia com os bonecos com cara de homem, beijando-os e sentindo-lhes o corpo com os dedos trémulos, talvez por isso, eles espantados, ardessem confusos sem nunca acreditarem no ódio que ela queria sentir pelo marquês».

Assim nos surge valter hugo mãe no livro de maldições: fulgurante, dramático, visual, alegórico, enigmático. São 52 poemas em prosa, tanto breves quanto intensos, com um feitiço imperdível. Sobretudo, porque estas maldições alvejam a normalidade, a modorra, a palavra do costume. Inconfundível marca do autor, esta é uma escrita proibida para leituras sossegadas.

Linguagem expressionista

Neste livro de maldições fulgura uma vez mais uma escrita expressionista, onde ressumam Kafka e Paul Klee (pintor e poeta), nas construções alegóricas, nos processos, nos símbolos utilizados, na atitude crítica e interventiva. As palavras de cores puras conjugam-se em imagens abstractas, conjuram-se no lúgubre e no iluminado, contorcem-se num dinamismo inesperado, num emaranhado visual de alienação e intensidade psicológica.

Desfocar o real para apreender a sensação, aprender o pássaro para saber o que há «entre a terra e o chão», parece ser o método para o conhecimento: «as coisas ensinam o chão. explicam-lhe quanto há entre terra e céu, o caminho livre do voo, a vista elevada de deus. eu vejo anjos e os anjos são das coisas aladas os sonhos mais completos. erguem-se braçados de asas a educar o vento, percursos de sopro que se abrem nas dimensões, e luzem nas nossas cabeças como homens enfim pássaros. como se as árvores pudessem ser casas nossas e nada nos acordasse na força do frio ou da chuva. como se nos cumprimentássemos em pleno ar, seres tão leves atarefados com mais nada. seríamos só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao alto.»

Gnóstico, o símbolo da árvore surge fortíssimo como coluna vertebral da aprendizagem: «tudo o que as árvores fazem é pensar. ficam generosas à espera de chegar a uma conclusão. e se morrem não é absoluto que tenham tido resposta. deram sombra, pássaros, fruto e vento, mas podem partir quietas, como quem tomba dentro de si mesmo, com felicidade pelo que já passou e nenhuma mágoa, só aceitação sábia do tempo».

Abstracção do corpo, corporização do abstracto

Também o corpo atinge a abstracção, sujeito ao processo de deformação subjectiva. Surgem homens de grandes dimensões que não cabem nas suas casas, ou nos seus corações, homens que habitam paredes movediças – a fazer lembrar as casas giratórias das telas de Paul Klee –, mulheres excisadas, crianças sem um braço no meio do peito, por isso incapazes de agarrar nos corações umas das outras. Todavia, também se dá o inverso, com a figuração de sentimentos: a maldição da dor e da saudade é configurada num grilo lambuzado de sangue que passa por um pequeno buraco do seio de uma mulher – a remeter-nos para Kafka e a metamorfose de Gregor Samsa em insecto.

Também o amor eterno surge de forma inusitada e inebriante como um corpo desprezado, mas com nota de esperança:

«inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. Pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar».

Livro de maldições, valter hugo mãe; objecto cardíaco, Vila do Conde, 2006


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Nocturna disse...

Teresa
É sempre um grande prazer passar por aqui.
Ninguém consegue ler todos os livros que se vão publicando, mas ler os seus textos provoca dois efeitos : por um lado ficamos a tomar conhecimento da beleza que eles encerram sem ter que os comprar; por outro dá vontade de ir a correr comprá-los.
Que fazer ?
Um grande abraço e muito obrigada.
Nocturna

Teresa disse...

Olá
Pois; por aqui vou fazendo o que posso :)..sempre com o meu gosto e o meu olhar pessoal. É bom saber que gosta. Obrigada por mo dizer.

Um grande abraço
Teresa