Na vertigem da inovação que caracteriza as sociedades modernas, não deixa de ser surpreendente o sempiterno sucesso das narrativas populares. As crianças adoram-nas, os adultos rejubilam. Todos as adoptam, interagem com elas, recriam-nas e, assim, aperfeiçoam-nas «como um seixo rolado pela água, que pouco a pouco se torna mais polido e luzidio», como dizia Leite de Vasconcelos
«A Machadinha e a Menina Tonta, e o Cordão Dourado» são mais duas histórias tradicionais portuguesas que nos chegam da escritora Alice Vieira, ilustradas esplendorosamente por Bela Silva, num belíssimo livro cartonado, com chancela da Editorial Caminho. Mais dois daqueles seixos prontos a rolarem na água do crescimento, para que as gerações do futuro os possam polir e transmitir a outras gerações. Tem sido assim, ao longo dos séculos, a corrente alquímica, intemporal, autentica e viva das histórias populares.
Ambas as histórias são, à maneira das histórias populares de autor anónimo – passadas oralmente, o autor perdeu-se no tempo – narrativas curtas, cuja brevidade tem implicações estruturais: poucas personagens; concentração e indefinição do espaço e do tempo; acção simples e linear; fórmulas introdutórias – «A história que vou contar…», em «A Machadinha…» e «Era uma vez uma mulher…», em «O Cordão Dourado» –; recurso à repetição que facilita a memorização e concentra o leitor /ouvinte na linearidade da narrativa; têm um final feliz, uma compensação dada às personagens principais pelas suas atitudes.
A primeira narrativa conta a história de uma rapariga «Tonta, tonta» que todos diziam «fazer parte da família mais tonta à face da terra», e de um rapaz que «se tomou de amores por ela» apesar do pai o advertir: «mulher tola não faz casamento feliz». No dia de se marcar a boda, a «menina chora com medo» no meio da adega, por ter visto uma «machadinha pendurada no tecto» que iria cair e matar o menino que haviam de ter. Toda a família se pôs em «ais» pelo menino e o rapaz, dando credo às palavras que todos diziam, rompe o noivado para, anos depois, depois de ter vivido e ganho experiência do mundo, perceber que a «tolice da sua noiva» nada era «comparada com a loucura que ataca a terra inteira!». Porque a «machadinha poderia mesmo cair e matar o menino, o casal nunca teve filhos, e assim se explica, com recurso ao maravilhoso, um facto que causa dor nos casais e que é, fria e cientificamente explicado.
A segunda história, com a moralidade do exemplo, traz-nos a simbologia do número três, símbolo da perfeição e da concretização, que vem de tempos imemoriais e continua bem presente nos ditos populares como o «não há duas sem três». Com efeito, nesta história do «Cordão Dourado», é a terceira rapariga que mostra trabalhar com empenho, alegria e felicidade, e, por isso, a recompensada com um fino cordão de ouro, fino, mas “mágico” pois traz-lhe o amor e a riqueza. As suas duas irmãs desejavam melhor recompensa do que a que lhes era dada pelo trabalho doméstico prestado em casa da vizinha e, embrenhadas no materialismo não estavam preparadas para ensinamentos e recompensas.
Mostra-se que os cordões dourados são todos aqueles que se tecem com probidade, iluminados com o brilho da alegria de quem não pede contrapartidas para o bem que faz aos outros. O maravilhoso é uma forte componente da história com a vizinha a ser uma “fada” disfarçada, e o final à maneira da Gata Borralheira, agora com um Rei a fazer Rainha a rapariga que merece.
É louvável a dedicação de Alice Vieira na (re)elaboração de histórias populares – repeto esta terminologia em vez de histórias tradicionais, pois faço parte dos que defendem ser o termo “Popular” de significado mais extenso, cabendo nele toda a matéria literária que o povo entende e gosta, seja sua ou de outrem, antiga ou recente. Elas servem de entretenimento, a pessoas de todas as idades, e, mais especialmente, a crianças. O lúdico traz o ensinamento moral e a experiência susceptíveis de moldar o carácter e enriquecer o saber.
Histórias Tradicionais Portuguesas – Nova Série, n.º 1, Alice Vieira, ilustrações a cores de Bela Silva; Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro de 2006
nota: este texto foi escrito em 2006, aquando do lançamento deste livro de Alice Vieira
© Teresa Sá Couto
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