domingo, 14 de junho de 2009

Palavras de música e silêncio - poemas de Fernando Tordo

Não são cantigas que ele nos traz, mas é, e ainda, a música das palavras. «Quando não souberes copia» é o título do livro de estreia na poesia de Fernando Tordo.

Mas o que tem para nos dizer este homem de 60 anos e músico há mais de quarenta? O que registam as suas letras, agora cinzeladas no intimismo e no silêncio do poema? A sua poesia regista olhares e interpretações do mundo, marca do sentido global do homem. E, nas 86 páginas, poema após poema, o autor mostra que, se não se sabe contar o mundo, basta prestar atenção às próprias veias onde correm sentimentos e sensações, o medo e a esperança, o sonho e a perda: o rio interior de cada um é cópia do de todos, porque todo o homem é feito do mesmo barro.

Com o sentido da sua própria incompletude, o poeta parte no encalço de todos os homens para se construir a si, homem: «Aquele barco longe de mim/ e eu ainda mais longe de mim /por isso não sei da distância do barco até mim, a qual de mim. /Vejo-lhe o mastro, imagino-lhe o rasto, mas desconheço-lhe / o rumo. Ponho-lhe um dos de mim ao leme e com voz de bússola ordeno-lhe/ que procure outro. /Mas não me respondo /nem um nem outro /não nos conheço /e ao agarrar o leme que nos dei /afundo o barco /onde sem saber /estava o meu outro que só agora sei.».

Na procura humana, o poeta detém-se no mercado de Coyoane para lhe apreender as pessoas, a ambiência e os sentidos, como antes no mercado de Alvalade, porque «com sentidos, recordamos os /distintos rumos que atribuímos / à vida»; visita o café “El Pêndulo”, da Cidade do México, cheio de olhares de Frida Kahlo; observa a morte de Arafat e constata o mesmo silêncio: «Na Mukata ou no cemitério do Lumiar»; procura o sentido do medo em Ossétia, «no olhar daquele menino /que nunca mais encontrará o sentido /dos sentidos»; entra no comboio da sua condição, não sentado de frente para o destino, como lhe disseram, mas de costas: «teimo em dizer que vou acordado e quero saber /por qual diapasão afino /se bato de costas quando chegar /ou se esbarro de caras com o destino».

Numa escrita que se liberta do grilhão da rima, «até porque acordes não rima com liberta», assim segue a palavra solta pelos vários pontos do mundo, no rasto longínquo dos homens, ajustando contas com Deus, pedindo-lhe responsabilidades, mas, sobretudo, pedindo responsabilidades aos homens que banalizam a dor com que se constrói a indiferença. Neste sentido, esta poesia de Fernando Tordo envereda pela denúncia que desafia a uma mudança de comportamento, lembrando a que ele durante tantos anos interpretou nas suas cantigas. Correm, completos, dois desses poemas:

A linha do horizonte faz uma curva perigosa e está fora de
mão
A linha do horizonte, afinal, é um embuste linear e um
veículo mal conduzido
Quem lhe deu toda esta grandeza esqueceu-se de que lhe
estava a dar todo o poder. Ouviste, Deus?, é contigo.
Ou será que te enganaste e não percebeste que o horizonte
não é para ver de cima? Já não é a primeira vez que te
apanho em falso.
Repara nos homens.
Nas guerras.
Na fome.
Nos incêndios e nas cheias.
Queres pior?
Repara na mentira.
Queres um resumo? Repara em ti.
Já sei, já sei. Para estes casos, tu não és nenhuma entidade
superior, tu és dentro de cada um de nós.
Mas a multa do horizonte fora de mão, essa pagas tu.

****
Quantos achas que morreram no atentado desta manhã?
oito, 23?
e feridos graves?
71, quarenta e quatro? Nenhum?
Ao pequeno almoço, Manuel e Maria apostam via rádio.
Não jogam a dinheiro são pobres como a morte
apostam na morte a feijões para o jantar
à hora do pequeno almoço.
Amanhã, ligam a telefonia outra vez.
Quantos para hoje?
onze mortos e vinte e sete feridos, 18 graves, ou
cinco mortos e 39 feridos, nove graves?
O Iraque, a batota, a aposta. A sorte. O azar.
O mundo todo em jogo, Las Vegas todas as manhãs
da vida da Maria e do Manuel, surdos com as ondas
das bombas e da rádio.
Quando nos habituamos, apostamos a morte a feijões.
Quantos achas que são hoje?, quem perder faz o jantar.
Feijoada.



Quando não souberes copia, Fernando Tordo; editorial Campo das Letras; Porto, Maio 2007

© Teresa Sá Couto

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