Bastam dezoito poemas para Pedro Sena-Lino cartografar a «Zona de perda» e estabelecer encontros raros com o leitor. Sufocado por «um nada imensamente tu», o sujeito poético desvela, gradativamente, o mapa da alma abandonada. «Queria morrer contigo /não queria morrer de ti», refere o longo diálogo com o Tu ausente – e a partir dele, o diálogo com o Eu –, e o Leitor, enquanto procura o projecto de sobrevivência pós perda; o subtítulo «livro de Albas», evidencia a construção de um compêndio sobre o acordar e a revelação: no escutar do silêncio que dá forma à emoção mais íntima; no acordar do leitor, alvo, emboscado e reflectido no movimento de noites e madrugadas.
Disse Goethe: «Não és mais que uma sombra na noite da terra /enquanto não tiveres compreendido esta lei: /Morre e transforma-te». Pedro Sena-Lino comprova que a Poesia é o gládio, corpo da alma, lugar onde se morre, renasce e se redime.
Segundo Roland Barthes, em Fragmentos do Discurso Amoroso, o reino da memória é uma arma de ressonância, e «a ressonância é a prática zelosa de uma escrita perfeita, a pureza de uma escuta que dói». Assim entendemos o discurso íntimo e emotivo, que nos traz Pedro Sena-Lino, erigido pela memória da perda, desde a sua origem, desde o momento do êxtase, do lugar fundo onde se ouve «morrer uma noite» e se escuta o «eco de corpos»:
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia
era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos
chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita
chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguémque eu próprio desconheço
donde só o silêncio se desconhecia
era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos
chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita
chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguémque eu próprio desconheço
Roland Barthes considera o processo onde o «outro está ausente como referente, presente como interlocutor» uma «singular distorção» que origina a sensação de se estar prisioneiro entre tempos. No caso deste corpus poético, o Eu está prisioneiro entre o passado da perda, o presente insustentável, e o Futuro povoado de medo e descrença: ontem foi o amor, hoje é a perda, (tempo de todos os silêncios e ecos) e, sendo hoje «o futuro de ontem», lê-se: «com as duas mãos amanhecidas em ontem /despeço-me de ti».
Porém, neste discurso de recordação e morte, que arrasta o sujeito poético para o interior onde se define o abandono, cintila «uma sede iluminadamente branca»: «o verbo do amor é transe e transito /mas o que em nós é antigo como o sémen /procura inclinações de sede até tocar o início /vento e água e terra ansiosamente recriada /o próprio modo de Deus se encontrar //perderam-se as paredes do meu corpo /quando chegares existirá um amor /mais alba que sermos manhã /e fabricarei um mundo /onde não nos possa morrer».
Se todo o discurso da ausência só pode ser feito por quem fica – o Eu poético –, é, todavia, a partir do Tu ausente, objecto da perda, que ele se constrói:
da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida
No diálogo com o outro, comprova-se a angústia, reconstrói-se o que se perdeu, faz-se o luto e edifica-se a vida. E a palavra está lá para registar tudo isso:
e agora apenas as trevas pronuncio e caminho
há de nascer uma escada onde era o amor
um livro de albas que nunca foram noite
a sede de outros há-de beber a luz
que tu nunca me abraçaste.
Com estes «outros» que hão-de «beber a luz», mostra-se que a revelação do Eu não se extingue no diálogo com o Tu ausente, e um outro Tu, o leitor, parece surgir como motor da revelação e cúmplice da emoção:
um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo
E a esse novo Tu, alerta-se para o sentimento da perda: «subirás as escadas fantasmas da posse», conhecerás «Os sítios perdidos de tão tidos / as noites que doeram por se abraçar», «passarás pelo fogo das palavras mentidas», «sentirás a ausência de ti», «verás os selos do coração desfeitos, verás o teu nome medido em sílabas de pânico» que têm o «sabor cru dos peitos esmagados pela ausência /o som a fogo interior de tão imaginado /e andarás na memória como numa dor intrusa», «com as mãos do desejo tocarás no fim», «um dia encontrarás o amor onde ele não te encontre mais».
A esse Tu fica também a certeza de que não está só:
Quando caminhares na dor como um chão
estarás de pé na morte onde te vejo
na cal viva das paredes dos ossos
o teu abraço chegará a mim
como um rio acordado de frio.
da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida
No diálogo com o outro, comprova-se a angústia, reconstrói-se o que se perdeu, faz-se o luto e edifica-se a vida. E a palavra está lá para registar tudo isso:
e agora apenas as trevas pronuncio e caminho
há de nascer uma escada onde era o amor
um livro de albas que nunca foram noite
a sede de outros há-de beber a luz
que tu nunca me abraçaste.
Com estes «outros» que hão-de «beber a luz», mostra-se que a revelação do Eu não se extingue no diálogo com o Tu ausente, e um outro Tu, o leitor, parece surgir como motor da revelação e cúmplice da emoção:
um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo
E a esse novo Tu, alerta-se para o sentimento da perda: «subirás as escadas fantasmas da posse», conhecerás «Os sítios perdidos de tão tidos / as noites que doeram por se abraçar», «passarás pelo fogo das palavras mentidas», «sentirás a ausência de ti», «verás os selos do coração desfeitos, verás o teu nome medido em sílabas de pânico» que têm o «sabor cru dos peitos esmagados pela ausência /o som a fogo interior de tão imaginado /e andarás na memória como numa dor intrusa», «com as mãos do desejo tocarás no fim», «um dia encontrarás o amor onde ele não te encontre mais».
A esse Tu fica também a certeza de que não está só:
Quando caminhares na dor como um chão
estarás de pé na morte onde te vejo
na cal viva das paredes dos ossos
o teu abraço chegará a mim
como um rio acordado de frio.
© Teresa Sá Couto
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