domingo, 26 de julho de 2009

Os caminhos-de-ferro na Literatura

Viagem ao fundo da nostalgia

Muitos guardarão, como eu, uma memória de infância, funda e nostálgica, das antigas Estações de caminhos-de-ferro rurais, locais de embarque para grandes viagens. A graciosidade dos edifícios, jóias na paisagem silenciosa onde se vigiava o silvar do comboio, o interior com as madeiras enceradas e os cheiros desse zelo misturado com o adocicado de óleos da maquinaria, as paredes alvas decoradas com narrativas contadas a azul e branco dos azulejos, num festim de sentidos. Mas esses cais de memória romântica fazem emergir a revolta, igualmente funda, por termos assistido, impotentes, à decadência e ruína das estações. E aqueloutro canto do comboio fica guardado na eternidade da memória.

O livro «Carris de Papel – o caminho-de-ferro na literatura portuguesa» desata-nos muitas questões e é com aplausos que o acolhemos. Organizado soberanamente por Albert Von Brun, nele coligem-se 21 textos em prosa e 6 em verso, de autores como Fernando Pessoa, Fialho de Almeida, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, entre muitos outros, e que atestam o fascínio pelo monstro de metal.

Na introdução, Albert Von Brun traça brevemente a história da ferrovia em Portugal, e sua contextualização europeia, o sonho concretizado por Fontes Pereira de Melo, as polémicas que suscitou, os «interesses que agregou», os «ódios que ateou», comprovando-nos isso na recolha de textos. Presença forte na literatura portuguesa, através da recriação ficcional dos caminhos-de-ferro, seguimos parte da História de Portugal, politica, social, económica, cultural e psicológica.

Portugal de comboio…

Em quadras de gosto popular, Fernando Pessoa atesta a cumplicidade e o convívio proporcionada pelos comboios:
No comboio descendente /Vinha tudo à gargalhada /Uns por verem rir os outros /E os outros sem ser por nada.

Também José Viale Moutinho atesta a alegria e o carácter democrático do comboio, procurado por todos os extractos sociais. Por outro lado, reagindo à modernidade, Guerra Junqueiro benzia poeticamente uma locomotiva, com a sátira sagaz que lhe era própria, com vastas implicações no estado da nação:
Viajo no comboio do douro /pelo natal de tanta gente /entre malas e palavras /…/atrasa-se o caminho que /entre transbordos e vocábu /los cruzados se narra cada /vida em folhetim e sandes /de chouriço presunto vinho.

Num texto para crianças, José Jorge Letria conta a história de um velho comboio que partilhou muitas vidas e tem um grande coração. Um toque de fascínio que chega também aos mais pequenos que partilham o deslumbre pela grande e mágica máquina:
Talvez eu devesse, caso queiram dar-me nome, chamar-me «Muita Terra», porque esse sim, corresponde à realidade que foi a minha vida.

As maldições de Vulcano

Albert Von Brun refere-se à exploração que a literatura faz do lado sinistro do caminho-de-ferro, «feito de desterros, mortes e misérias», com o comboio a surgir com a metáfora do «monstro de ferro», produzido «na forja de Vulcano» que é, «ao mesmo tempo, o deus do fogo, do desejo, do delito e da fatalidade.». Para isso, o organizador desta antologia, recupera Fialho de Almeida, mestre da escrita visual e crua, com o texto «O filho» – de «O País das Uvas». Nele conta-se que na Beira, na estação da Pampilhosa, uma mãe espera o comboio de Lisboa que traria o filho vindo do Brasil, sem saber que ele morrera no mar, durante a viagem:

- O seu José, tia Rosa, o seu José…morreu na viagem.
Nem um grito de espanto, um queixume, uma lágrima, nem sequer um um último suspiro. Aconchega mais o xaile sobre os ombros, baixa a cabeça trémula e gelada, e pequenina, acocorando-se mais por entre o tumulto daquela gente alegre, ei-la caminha a cambalear como uma bêbeda. (…) ela não sente, ela não ouve, avança! avança! E a máquina chama-a a si subitamente, dá-lhe um encontrão pra dentro do caminho, enovelou-a bem nas saias da viúva, e sem trepidar fá-la num bolo, passa-lhe por cima, e continua a correr à desfilada.
Viu-se um dos pés da mulher escrever na terra o quer que fosse, protesto, suplica, epitáfio… e ao outro dia, quando os trabalhadores foram levar o corpo ao cemitério, o cura da Pampilhosa recusou-se a enterrá-la em sagrado, sob o pretexto de a velha ter morrido sem confissão!

Também Vergílio Ferreira, em «Manhã Submersa», num texto com características autobiográficas, associa ao comboio que o levou para o seminário do Fundão a dor de ter sido «espoliado abruptamente» da sua infância. Com o ponto da angústia na estação da Castanheira, o cais para o abandono, traça um percurso lancinante pelas estações da Guarda, Covilhã até à chegada à estação da Torre Branca:

E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim com um rancor subterrâneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir.

Progresso ou megalomania?

Atrasado, o Portugal de oitocentos reagia em partidos contrários, à implementação do comboio no país. Um artigo de Alexandre Herculano – O caminho-de-ferro e a nacionalidade – polemiza o programa de obras públicas do fontismo, que nos faz lembrar as actuais polémicas sobre o TGV trazidas quotidianamente à berlinda entre defensores e oponentes.

Dissestes que combatíamos a feitura dos caminhos-de-ferro; que combatíamos em especial os que devem ligar-nos com a Espanha; e que condenávamos todos pelos benefícios que para a nossa civilização daí hão-de resultar. (…)Os caminhos e ferro, facto impreterível (e ainda bem que o é) da civilização moderna, devem produzir incalculáveis benefícios para o país; mas por isso mesmo que importam uma revolução , que são um remédio salvador, um remédio heróico, trazem consigo o perigo de um dano também imenso. Apontar ao poder esse perigo: perguntar-lhe, não em nosso nome, mas em nome da pátria, quais são os meios para obviar a ele, é ou não um dever e um direito daqueles que estão convencidos da existência desse perigo? (…)este medicamento cura o estômago e arruína o fígado; o meu intuito é curar o estômago; o fígado que se arranje como puder?

Carris de Papel – O caminho-de-ferro na literatura portuguesa, organização de Albert Von Brun; Editorial Caminho, Lisboa, Maio 2006

© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Theresa S. de Castello Branco disse...

Ignorava por completo a existência do livro de van Brun sobre o comboio na literatura portuguesa, que a Teresa nos apresenta. E como eu teria gostado de o conhecer quando há pouco escrevi sobre o comboio na literatura. Vou ver se ainda encontro um exemplar. Um abraço amigo Theresa

Teresa disse...

Olá, Theresa! Estava com saudades suas :)
Olhe que coincidência esta, deste livro!
A Caminho terá, seguramente. Nas livrarias não acredito que encontre, pois os livreiros devolvem os livros passado pouco tempo; há, todavia, sempre a hipótese de "encomendar" e fazem eles o percurso de pedir às editoras. Depois diga-me se conseguiu.

Este livro é uma pérola.

Um grande abraço
TSC