sábado, 8 de agosto de 2009

Passarola do padre Bartolomeu apresentada há 300 anos

A 8 de Agosto de 1709, em Lisboa, sob o olhar atento e desconfiado do Santo Ofício, o Padre Bartolomeu de Gusmão apresentava a Passarola Voadora, engenho que fazia dele o percursor mundial do balonismo. Decorridos 3 séculos, ainda nos apaixonamos pela história da ave grande numa espécie de navio, mas para navegar o ar, que tanto impressionou a corte portuguesa de setecentos. E é em nome desse assombro que registo esta minha homenagem.

Especialistas defendem que o invento que o padre Bartolomeu pôs a voar nada tem a ver com os conhecidos desenhos que o representam, sendo estes meros exercícios imaginativos. Porque o assunto é do foro do extraordinário, deixem-se as questões científicas e sigamos pela imaginação de José Saramago e pelo seu romance Memorial do Convento.

Assim, logo a saber, o sonho foi partilhado a três: o Padre, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete –Luas, «casal ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado pela igreja», tendo Blimunda «mistério tão grande que voar faria figura pequena»: todas as manhãs antes de abrir os olhos, comia pão, pois em jejum conseguia olhar para «dentro das pessoas». Ficava claro que para se voar na atmosfera seriam precisas forças concertadas, do sol, do âmbar, dos ímanes, e das vontades – «pelos menos duas mil vontades que tiveram querido soltar-se por as não merecerem as almas, ou os corpos as não merecerem», que Blimunda guardaria em frascos –, e que as vontades seriam, de tudo, «o mais importante», sem elas a terra não os deixaria subir.

Soprando os espíritos nestes três sonhadores, havia que testar o sopro do vento. E testou-se a exótica passarola, numa aventura, que transcrevo da inventiva ficcional de José Saramago, sem interrupções.

O dia em que a Passarola voou

Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco. São maneiras de nos segurarmos do lado de cá, imagine-se, darem os doidos como pretexto para exigir igualdades no mundo dos sensatos, só loucos um pouco, o mínimo juízo que conservem, por exemplo, salvaguardarem a própria vida, como está fazendo o padre Bartolomeu Lourenço, Se abrirmos de repente a vela, cairemos na terra como uma pedra, e é ele quem vai manobrar a corda, dar-lhe a folga precisa para que se estenda a vela sem esforço, tudo depende agora do jeito, e a vela abre-se devagar, faz descer a sombra sobre as bolas de âmbar e a máquina diminui de velocidade, quem diria que tão facilmente se poderia ser piloto nos ares, já podemos ir à procura das novas Indias.

A máquina deixou de subir, está parada no céu, de asas abertas, o bico virado para o Norte, se se está movendo, não parece. O padre abre mais a vela, três quartas partes das bolas de âmbar estão já à sombra, e a máquina desce suavemente, é como estar dentro de um bote num lago tranquilo, um jeito no leme, um harpejo de remo, as coisas que um homem é capaz de inventar.

Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul, como levantariam os olhos se estão aterrados diante de uma Bíblia rasgada na altura do Pentateuco, de um Alcorão feito em pedaços indecifráveis, e já saem, vão na direcção do Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não adivinham que o protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos excessivos, mas não familiares do Santo Ofício.


Memorial do Convento, José Saramago; Editorial Caminho, 15ª edição, Lisboa 1985


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Paulo Assim disse...

Quando comecei a ler «O Memorial do Convento» não consegui passar das primeiras páginas. Abandonei-o na mesinha de cabeceira e aí esteve (digo a verdade) um ano inteiro à espera. Nunca faço isso a um livro, vou sempre até ao fim, por mais entediante que seja. Passado esse ano voltei à carga, dizendo a mim mesmo «é agora ou nunca» - e cheguei ao fim. Cheguei ao fim e claramente rendido: é sem dúvida um grande livro e direi mesmo a obra-prima de Saramago (que, como quase todos os prolixos escritores, também tem muitos livros maus e direi mesmo péssimos... na minha opinião, claro).

Teresa disse...

Olá Paulo

Para mim, este também é o melhor romance de Saramago, direi mesmo, a sua obra prima. Foi o primeiro que li dele,tinha 18 anos, e o que me fez ler bastantes outros.
Todavia, estive zangada com a escrita do autor durante a última década (também considero que tem livros péssimos), tendo feito as pazes com ele há pouco com o «A Viagem do Elefante», livro que recenseei (o meu texto está na Orgia Literária, mas com acesso também aqui neste blogue, na etiqueta José Saramago).

Um abraço
T.