quarta-feira, 9 de setembro de 2009

«100 fábulas De La Fontaine»

Numa jóia editorial com talento português

Volvidos três séculos das primeiras edições das Fábulas de Jean de La Fontaine, milhares de edições para outras tantas ilustrações, atento numa jóia editorial que nos deixa atónitos pela sua magnificência: «100 Fábulas de La Fontaine» envoltas em arte portuguesa, seleccionadas por José Viale Moutinho, traduzidas por portugueses como Bocage e Teófilo Braga, recriadas portentosamente pelas ilustrações de José Emídio; tudo reunido num livro de luxo ou não tivesse a chancela da Campo das Letras, editora que habitou os leitores à qualidade soberana destes objectos que nos tiram o fôlego.

É desacertado julgarem-se as Fábulas de La Fontaine apenas literatura infantil. Elas são para todos e comprova-se na intenção do fabulista francês mais famoso do mundo: «O mundo é velho /(Dizem) e eu creio que inda diverti-lo /Compete, como as crianças se divertem» (O poder das Fábulas, pag 202). Na apresentação, José Viale Moutinho diz como «o Senhor La Fontaine puxa as orelhas à república dos homens pondo a falar o reino dos animais»: «Papagaio real, quem passa? / – É o Senhor de La Fontaine que vai à Praça! / – E o que vai lá fazer? / – Colher os tiques da gente, /…/ Tal senhor escreve fábulas /e nenhuma outra ficção! / – É que os homens e as mulheres / (é bom se o souberes!) / têm tiques e pruridos tais /que é melhor /(Para não os ofenderes!) /pregar-lhes lições tais /que só metam animais!/…/ - E são lições para a humanidade /se comportar a preceito! / É que o tal de La Fontaine /queria ver este mundo /portar-se muito direito».

Viale Moutinho questiona-se sobre o «misterioso desígnio» que faz com que estas fábulas cheguem, vigorosas, aos nossos dias, para concluir que é a sua perenidade enquanto forma literária bem como a actualidade dos «conceitos morais que são o desfecho de todas elas». Justifica que a antologia de 100 fábulas «não é totalmente inocente», pois entende ser este o «núcleo mais duro da obra de La Fontaine, e considera que as fábulas do francês «já não suportam entre nós a edição integral».

As 100 fábulas coligidas têm tradução portuguesa de A. Lopes Cardoso, Abel Botelho, Acácio Antunes, Alfredo Alves, Bocage, Cipriano Jardim, Costa e Silva, Curvo Semedo, E. A. Vidal, Eduardo Garrido, Fernando Leal, Filinto Elísio, Francisco Palha, Gomes Leal, Gonçalves Crespo, Henrique Lopes de Mendonça, José Inácio de Araújo, José de Sousa Monteiro, Luís de Macedo, Miguel do Couto Guerreiro e Teófilo Braga.

As 100 ilustrações de José Emídio

As fábulas de La Fontaine foram ilustradas por grandes artistas ao longo dos séculos, com interpretações pessoais, mas que reiteram o seu carácter intemporal e universal. Destaco os guaches de Chagall, muito aplaudidos pela crítica da época, realizados entre 1926 e 1927 e exibidos em 1930 com pompa e circunstância. Antes da arte chagalliana, refira-se o trabalho de Gustave Doré (1867) sobre madeira, onde aparecem ora figuras humanas, ora animais.

As presentes 100 ilustrações nas páginas ímpares recriam de forma particular as narrativas das páginas pares. As interpretações das fábulas foram, seguramente, um desafio para José Emídio que o cumpre com distinção, criando um parentesco moral e narrativo, subtil e impressionista com as narrativas do francês. José Emídio, que já nos habituou à qualidade do seu trabalho, pinta como ninguém essa “poética comum" e universal, em pinceladas que põem em movimento quadros morais; um movimento pictórico que sai das páginas em direcção ao espectador que assiste com assombro à visão pessoal do artista. Doutra parte, estas ilustrações surgem com força mesmo se retiradas das fábulas. São, por todas as razões, 100 obras de arte imperdíveis.

Os vícios humanos e a fórmula da perenidade

No reinado tirano de Luís XIV (1643), La Fontaine encontrava a matéria para as suas breves narrativas em verso, com as rimas a facilitarem a memorização e a fixarem, de forma lúdica e humorística, os ensinamentos. O mesmo carácter lúdico da moralização dos costumes foi seguido pelo nosso dramaturgo Gil Vicente, que teve na máxima Ridendo castigat mores – a rir corrigem-se os costumes – soberana actuação. Os avisos do fabulista francês constroem-se com recurso a animais antropomorfizados. A reconversão é feita com agilidade e engenho narrativos, amplificação subtil dos vícios sociais e um talentoso carácter interventivo na sociedade e na moralidade. Algumas fábulas são recriações de fábulas do grego Esopo que por sua vez foram aperfeiçoadas pelo latino Fedro. No entanto, este tipo de texto já aparece no século XVIII a.C., na Suméria. É, no entanto, La Fontaine que as populariza em todo o mundo. As Fábulas foram editadas em 12 livros, de 1668 a 1694: I a VI (1668), VII a VIII (1678), IX a XI (1679), e XII em1694. Muito apreciado na sua época, La Fontaine pertenceu ao grupo literário-filosófico francês de Molière, Racine, Nicolas Boileau-Despréaux, entre outros, tendo sido eleito membro da Academia Francesa, em 1683.

Desta forma, chegam com actualidade incólume máximas morais, das quais destaco a da Cigarra preguiçosa e da formiga laboriosa; da raposa matreira como um vigarista; a fábula do corvo e da raposa cuja «lição vale um queijo»; da rã vaidosa que inchou para ser maior que o boi e rebentou; do lobo que come o cordeiro – «Sempre o sagaz prepotente /quer ter por base a razão, /inda que seja aparente» (O lobo e o Cordeiro, p. 30); «Na dor deseja-se a morte; /Mas quando vem faz tremer; /Qu’ é dos viventes o instinto /antes penar que morrer.» (O Lenhador, p. 38); «Assim, nas mútuas desordens /Dos grandes, dos potentados, /Quase sempre os mais pequenos /Vêm a ser os esmagados.» (Os Dois Touros e a Rã, p. 44); «Quase sempre as ímpias tramas /urdem o mal do inventor; /E mil vezes a perfídia /Recai sobre o seu autor.» (O rato e a rã. p. 88); «Confiar na Providência /Para obter o qu’ intentamos /Sem que os meios lhe ponhamos /É demência. /Nada obtém quem não procura; /Que foi sempre a diligência /Mãe da sólida ventura.» (O Carreteiro atolado, p. 156).

Viale Moutinho refere a «Excelente fórmula» encontada por La Fontaine que ditou a intemporalidade das suas histórias morais em verso: «Apurou a palavra e as maneiras de dar recados às gentes e divertiu com isso essas mesmas gentes, que não deram, ou fingiram que não davam (ou que não dão!), pelo espelho diante do rosto, lá isso não é mentira nenhuma. E como ele zurziu as mesmíssimas gentes e como continua a zurzi-las á escala internacional! E toda a gente gosta, às vezes fingindo que é com os outros, isso gosta, gosta muito…».

100 Fábulas de La Fontaine; selecção de José Viale Moutinho; ilustrações de José Emídio; 224 páginas; Editora Campo das Letras, Porto 2005

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

já li há algum tempo noutra edição.

mas convém dar uma vista de olhos a estanem que seja para ver os desenhos de Chagal...

bjos

Teresa disse...

Cláudia, esta obbra é de arte portuguesa: as ilustrações são todas de José Emídio. Referi Chagal no contexto doutros autores que ilustraram as fábulas ao longo dos tempos.
Mas garanto-te que estas ilustrações de José Emídio são surpreendentes; uma amiga minha comprou e disse-me que só não fazia quadros para o quarto dos miúdos porque isso implicava desmantelar o livro, também ele magnífico.Levantou a hipótese de comprar um segundo para esse efeito... Penso que ilustra o arrebatamento destas pinturas :)

Beijo
T.

José Emídio disse...

Teresa Sá Couto.
Acabei de ler os seus comentários sobre o livro "Cem Fábulas de La Fontaine".
Tenho que lhe agradecer as suas palavras. Na verdade,é sempre bom saber que há pessoas que, embora duma forma que considero demasiado generosa,apreciaram o nosso trabalho. Muito obrigado pela sua atenção.
José Emídio.
ze_emidio@hotmail.com

Teresa disse...

Olá José Emídio

Seremos todos nós a agradecer-lhe o seu magnífico trabalho, que nos ilumina.

Um abraço

Teresa Sá Couto