O tempo é reversível. Pela memória exuma-se um passado tido como perdido. Se a memória é acção, a palavra é a criação que lhe confere sentido: juntas executam o eterno retorno, transfiguram, legitimam o tempo branco, perpetuam-se e perpetuam o seu criador.
A memória é o tema irradiante da escrita de David Mourão-Ferreira (1927-1996), com fulgor máximo na Obra Poética editada entre nós pela Presença. Fulgor máximo porque, como defendia Calvino, uma obra não se explica por parcelas, mas sim na sua totalidade, e esta Antologia – que colige a poesia do autor de 1948 até 1988 – tem todas as parcelas da grande urdidura do esplendor.
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A memória persiste amolecendo-a: assim a representava Salvador Dalí nos relógios moles pendurados de ramos secos, numa alusão ao carácter maleável do tempo quando sobre ele age a criação artística. Na mesma esteira, David Mourão-Ferreira usa outra metáfora singular: a memória como mármore mole, a memória sustentada por dois excessos, «o da fixidez e o da diluição» – assim referido por Eduardo Prado Coelho que prefacia a Antologia –, o que permite ao poeta modular a sua enunciação, confirmado pelo próprio: «mármore, sim…mole porém, como a casca da árvore, como o vento no sono escutando…». Na mesma metáfora, é evidente a luta e a dor da criação:
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Luta de corpo a corpo no interior do corpo.
Monólogo do tempo no interior da alma.
Monólogo monótono com saltos inesperados!
Monólogo no mármore mais mole de que há memoria…
Mármore, e mar, e vento sobre o mar…
Memória!
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Poética da «Apoteose do Nada» – na demanda daquilo que na memória se pode e deixa construir, uma «matéria obscura que obstina para além da vida ou da morte» –, a obra poética de David Mourão-Ferreira tem, segundo Eduardo Prado Coelho, uma «estrutura de tríptico» – «és retina, és rotina, és renovo», enuncia o próprio David –, com os últimos livros organizados em «incursões nos ciclos anteriores». Comprova-se o carácter circular da memória com a própria criação poética configurada no Eterno Retorno:
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todo o dia senti,
bem funda, em mim,
a tortura do beijo que não demos:
lago sereno, preso num jardim,
saudoso dum nenhum sulcar de remos.
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Corpo, mármore fugidio
À procura «daquela ribeira que reabilita a pedra», ou a subjectividade artística capaz de recriar a memória, o Corpo surge como centro de todo o processo, donde partem todas as buscas, onde convergem todas as emoções, «corpo de mármore fugidio», «memória por onde desliza a sensualidade e o erotismo». Afinal, diz o poeta, «o mundo só é mundo enquanto houver o corpo», e o poema, também corpo, exprime o «Voto» que sintetiza o empenho de David:
À procura «daquela ribeira que reabilita a pedra», ou a subjectividade artística capaz de recriar a memória, o Corpo surge como centro de todo o processo, donde partem todas as buscas, onde convergem todas as emoções, «corpo de mármore fugidio», «memória por onde desliza a sensualidade e o erotismo». Afinal, diz o poeta, «o mundo só é mundo enquanto houver o corpo», e o poema, também corpo, exprime o «Voto» que sintetiza o empenho de David:
Que o fosso da memória se transponha,
que seja a solidão atravessada!
Da cálida crisálida renasça
de novo o corpo o corpo todo!
Venham as roucas sílabas da posse
no búzio dos ouvidos enroladas!
sobre a teia das veias impalpáveis,
reconstrua-se a cúpula dos olhos!
Que tudo, tudo, súbito se emprenhe
da realidade que a lembrança apenas
em folha de álbum, ressequida, guarda!
Que eu vá de novo decorar-te a seiva,
como um poema líquido que seja
urgente recitar na eternidade.
Enfrentar a voragem do tempo, descobrir os ângulos pelos quais o tempo nos devora, desafiar-lhe os quatro cantos com o canto poético é a grande tarefa de David Mourão-Ferreira. Para isso, escuta o «grito dos ventos», «pólen transformado», e constrói uma poética musical ímpar: «Além de amor, o meu amor quer melodia», diz o texto ao mesmo tempo que define a memória do amor: «O amor é um vidro sob um diamante: pois tudo foi vibrante e foi cruel». Em «Epitáfio», pode ler-se:
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Cada sorriso teu agora só desperta
esse remorso vil que a minha vida tem:
– A tua alma estava à minha espera, aberta…
Repousei no teu corpo e não fui mais além.
Com os tempos conjugados – o da memória e o da recriação, «biliões de cordas um só nó» –, pergunta e responde, no «canto secular do pensamento»:
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as pedras são pedras ou são vento?
(E são ombros, são espadas, são gladíolos.)
Mas os cantos são meus ou são do tempo?
Responda-se que os cantos, estes cantos, são do tempo futuro pois é lá que em cada leitor se recriarão.
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© Teresa Sá Couto
4 comentários:
dos beijos todos que demos
perdi-me completo por inteiro
no beijo pelo olhar que demos
Logo passo pelo seu espaço de poesia, Pedro
Um abraço
TSC
«Repousei no teu corpo e não fui mais além». Era a ideia que eu tinha...
Não me apercebi que a memória tem essa relevância na obra de David Mourão-Ferreira. Registei esta nota de leitura.
Excelente, como sempre.
Sim, C.a.,
O David Mourão-Ferreira é um exímio escultor da Memória.
Nem me parece possível falar-se de Memória na literatura portuguesa sem o trabalho de David.
Um abraço
TSC
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