sábado, 12 de setembro de 2009

Ideias e emoção com o Senhor Calvino

Sexto livro da série criada por Gonçalo M Tavares, «O Senhor Calvino» traz o olhar da procura essencial, e as coisas insignificantes suscitam reflexões singulares. Num dos sonhos, Calvino lança-se em perseguição da sua roupa, que alguém atirou de uma janela do alto de mais de trinta andares. Enquanto desce vai alcançando peça por peça, calça os sapatos, põe e ajeita a gravata, bem a tempo de chegar impecável ao chão.

Acordamos e concordamos: é merecido este desvelo para nos apresentarmos ao chão. Afinal, resta-nos sempre o chão, e podemos sempre contar com ele, porque ele tudo suporta: cansaço, traições, fracassos, fadigas ou como nos lembra o autor, no seu livro "Poesia 1": «aconteça o que acontecer, tens sempre um corpo que pesa; e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece(1).

Este Senhor Calvino é construído com muito do “Senhor Palomar” – personagem do romance Palomar, de Ítalo Calvino. Ambas as personagens são conscientes do carácter inesgotável das coisas e detêm-se na superfície dessa diversidade para lhe apreenderem o sentido. Palomar observa os pássaros e as ondas do mar. Também Calvino tem como exercício fundamental «treinar o olhar sobre as coisas do mundo». O seu dia-a-dia desenrola-se entre a banalidade dos actos diários articulada com a intensidade da procura.

Por exemplo, Calvino, de vez em quando, obriga-se a andar com um balão que guarda uma «pequeníssima parte da totalidade do ar do mundo». Um exercício fundamental para apreender a importância do Nada; « escolher uma cor para o balão era atribuir uma cor ao insignificante». Doutra parte, «a quase insuperável fragilidade do balão obrigava ainda a um conjunto de gestos protectores que lembravam a Calvino a pequena distancia que existe entre a enorme e forte vida que ele agora possuía e a enorme e forte morte que andava sempre, como um insecto desconhecido mas ruidoso, a cada momento a circular em seu redor».

Calvino deambula perscrutadoramente. Passear sem objectivo é permitir-se aprender. «Via-se como um peregrino, mas não tinha meta nem mapa. Queria ir directo, sem desvios, para um sítio onde se sentisse perdido.». Talvez por isso, sentisse comprazimento em não indicar correctamente as direcções aos que entravam no bairro: «fazer com que as pessoas se perdessem no bairro era um acto de generosa simpatia (…) sabia que se as pessoas fossem directamente, sem qualquer desvio, para o seu destino, nunca teriam oportunidade de ver e conhecer cantinhos que só os homens muito perdidos descobrem.».

Metódico na procura, nos sábados de manhã transporta, sem qualquer falha, uma vara metálica paralela ao solo. De regresso traz a mesma vara, mas na diagonal e com postura relaxada. Conclui: «Uma falha mínima podia transformar uma paralela em diagonal» e, «qualquer transportador de paralelas devia ser pago a peso de ouro pois demonstrava que sabia colocar, com exactidão, a mão no centro das coisas». Sempre à procura do centro das coisas, e assim, do seu próprio centro, Calvino «não deixava de aperfeiçoar, todos os sábados de manhã, essa específica habilitação técnica e metafísica.». Ser que por vezes se emocionava com as ideias, «não com o mundo», Calvino achava que «quem não tinha pensamentos próprios não tinha vida própria».

Existir é jogar e para que se jogue o jogo da perpétua descoberta há que subverter as regras criando regras subversivas. Aplicando este método subtil, Calvino e Duchamp jogaram. Como não tinham definido as regras, não sabiam quem tinha ganho. Então, em alternância, começaram a «formular regras para o jogo que já haviam jogado, cada um tentando definir o jogo capaz de o fazer, embora a posteriori, vencedor».


O Senhor Calvino, Gonçalo M. Tavares, ilustrações de Rachel Caiano, Caminho, 2005

(1). Gonçalo M. Tavares, Poesia 1, Relógio D'Água, 2004

© Teresa Sá Couto

6 comentários:

c.a. (n.c.) disse...

Julgo que o Italo Calvino era filho de um agrónomo/botânico e de uma professora de Botânica. O próprio Calvino terá começado por estudar Agronomia, e só depois terá ido para Letras. Sempre me pareceu que isso influenciou a sua maneira de olhar a realidade. Curiosamente, o Gonçalo M. Tavares é filósofo, mas dentro da Filosofia, a sua área de trabalho será a Epistemologia [ http://www.infopedia.pt/$goncalo-m.-tavares ], ou seja, «o ramo da filosofia que estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento». Também aqui me parece que a formação teve influência na escrita. Estarei errado? Esclareço que ainda não li a obra, pelo que estou a raciocinar em função do que escreveu sobre ela.

Escusado será dizer que achei o seu texto excelente, como sempre. Mais que uma crítica literária, as suas abordagens são «roteiros de viagem» pelo livro e pela obra do autor, um «teaser» de leitura, o que me parece ser muito mais difícil de fazer. Gostei muito. Parabéns, T. !

Teresa disse...

Olá, C.
O seu comentário instiga uma abordagem tão vasta que eu faria outro artigo para lhe responder. Todavia, sendo breve e tentando guiá-lo o melhor possível, aqui vai:
Sim, de facto é evidente, porque fortíssima, a formação filosófica de GMT na sua obra literária. A esta acrescentar-se-á a sua ligação à disciplina de Educação Física. É este diálogo que enforma as obras de GMTavares que mais me fascinam, e sobre as quais escrevi “qualquer coisa” (encontra os textos aqui na etiqueta GMTavares). É esse diálogo que encontramos na tetralogia dos seus Livros Pretos, onde se observa a Natureza Humana procurando-lhes os seus desequilíbrios: a loucura, o medo, a dor, e de análise do corpo sendo este o lugar da inscrição da dor (ver texto sobre o “Jerusalém”).
Nesta investigação feita pela palavra, encontramos a biologia e o espírito, o corpo e a alma; no centro, o cérebro de domínio ditatorial (ver textos “A verdade da Máscara” e, o último romance da tetralogia, “O Reino de Gonçalo M. Tavares”).

Quanto ao Senhor Palomar de Ítalo Calvino: é um livro inesgotável. :)

Beijinhos
e Obrigada :)
T.

c.a. (n.c.) disse...

V.Exa é um perigo para o meu orçamento, minha Senhora! Cada vez que converso consigo agendo uma ida à livraria... :-)))

Mas é um prazer conversar consigo, e isso compensa... :-)
Beijinhos
C.

Teresa disse...

rsssssssss

Beijinhos
T.

Claudia Sousa Dias disse...

é verdade que sim, Teresa...! já estou avfazer a lista dos livros do Gonçalo que desejo comprar...!

bjs


csd

Teresa disse...

Boa, Cláudia :)
Beijos
T.