Com a morte do filósofo, ensaísta e poeta M.S. Lourenço, no passado dia 01 de Agosto, aos 73 anos, verificou-se uma “procura acentuada” do seu Os Degraus do Parnaso, edição integral pela Assírio&Alvim em 2002, o que terá levado a que a obra “esgotasse”, segundo dito em algumas livrarias de Lisboa a leitores deste blogue. Ora, esta informação é errada. Confirmado por mim, os livros estão sossegados nas prateleiras da Assírio à espera de leitores que os mereçam.
Excelente notícia é também a que nos dá conta que a Assírio vai editar, ainda este ano, a obra poético-literária reunida de M.S. Lourenço, com o título O Caminho dos Pisões.
Excelente notícia é também a que nos dá conta que a Assírio vai editar, ainda este ano, a obra poético-literária reunida de M.S. Lourenço, com o título O Caminho dos Pisões.
M.S. Lourenço estreou-se com poesia em O Desequilibrista (1961, Moraes editores). Também pela Moraes, seguiram-se O Doge (1963) - romance miniatural que conheceu uma 2ªedição revista e aumentada pela Fenda, em 1998 -, Arte Combinatória (1971) e Wytham Abbey (1974). Também em poesia, a Perspectivas e Realidades publicou Pássaro Paradípsico (1979) e a Assírio&Alvim editou Nada Brahma (1991).
No campo da Filosofia, como bem lembrado na caixa de comentários em baixo, M.S. Lourenço é autor de A Espontaneidade da Razão, editado pela INCM e Teoria Clássica da Dedução, pela Assírio&Alvim (como se verifica no link em M.S.Lourenço) além de ter traduzido o Tratado Lógico-Filosófico e as Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein, pela Fundação Gulbenkian.
O aclamado Os Degraus do Parnaso, Prémio D. Diniz da Fundação da Casa de Mateus, colige ensaios literários que M.S. Lourenço editou no jornal O Independente. Teve a 1ªedição pelas Edições O Independente, em 1991, para ressurgir na edição imperdível que aqui se referencia.
.
Extracto do texto Genius Loci:
.
«[…]Em contraste com Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa mas antes o Latim de são Jerónimo, conhecido por Vulgata, o nome com que se designa a sua tradução da Bíblia. Mas de todas as línguas românicas a portuguesa é a que mais se assemelha ao Latim de São Jerónimo. O leitor da sua tradução do Novo Testamento não cessa nunca de se admirar perante a miraculosa congruência entre ritmo, o vocabulário e a sintaxe da frase da Vulgata, em formulações como
«[…]Em contraste com Fernando Pessoa, a minha pátria não é a língua portuguesa mas antes o Latim de são Jerónimo, conhecido por Vulgata, o nome com que se designa a sua tradução da Bíblia. Mas de todas as línguas românicas a portuguesa é a que mais se assemelha ao Latim de São Jerónimo. O leitor da sua tradução do Novo Testamento não cessa nunca de se admirar perante a miraculosa congruência entre ritmo, o vocabulário e a sintaxe da frase da Vulgata, em formulações como
.
Maria conservábat ómnia verba haec,
Cónferens in corde suo
Maria conservábat ómnia verba haec,
Cónferens in corde suo
E a correspondente frase portuguesa
.
Maria conservava todas estas palavras,
Conferindo-as no seu coração.
Maria conservava todas estas palavras,
Conferindo-as no seu coração.
.
Ambas as línguas conseguem exprimir a mesma interioridade meditativa mas lúcida do acto de conservar palavras para depois as conferir.
Ambas as línguas conseguem exprimir a mesma interioridade meditativa mas lúcida do acto de conservar palavras para depois as conferir.
Assim é-se forçado a concluir que a atitude tomada pelos portugueses perante o seu património é de tipo ingénuo ou naïf, não estando assim em condições de opor à incultura da civilização pós-industrial os frutos da sua história linguística e cultural, não se distinguindo assim dos chamados povos primitivos, já referidos acima, estudados pela etnomusicologia.
.
Os factores que determinaram uma sociedade, com quase novecentos anos, a possuir um tipo de consciência an-histórica são essencialmente dois. O primeiro é, ao longo de toda a história nacional, a inexistência, do ponto de vista da cultura, de uma classe social que a represente. A incultura em Portugal nunca esteve nem está associada a uma única classe social. A incultura é uma característica comum que une todas as classes sociais portuguesas, quer estas sejam definidas a partir do privilégio do nascimento quer a partir do privilégio do poder económico. Enquanto que no resto da Europa a cultura foi inicialmente um predicado da Coroa e depois, mais tarde, dos empresários, em Portugal a nobreza primeiro e os empresários depois nunca tiveram, nem têm ainda hoje, necessidades de cultura. É por isso que os portugueses, ricos e pobres, nobres, burgueses ou proletários não tiveram nunca, e assim não têm hoje, a paisagem, a arquitectura, os museus, as bibliotecas, e as orquestras que têm as outras nações europeias com a mesma longa história.
Os factores que determinaram uma sociedade, com quase novecentos anos, a possuir um tipo de consciência an-histórica são essencialmente dois. O primeiro é, ao longo de toda a história nacional, a inexistência, do ponto de vista da cultura, de uma classe social que a represente. A incultura em Portugal nunca esteve nem está associada a uma única classe social. A incultura é uma característica comum que une todas as classes sociais portuguesas, quer estas sejam definidas a partir do privilégio do nascimento quer a partir do privilégio do poder económico. Enquanto que no resto da Europa a cultura foi inicialmente um predicado da Coroa e depois, mais tarde, dos empresários, em Portugal a nobreza primeiro e os empresários depois nunca tiveram, nem têm ainda hoje, necessidades de cultura. É por isso que os portugueses, ricos e pobres, nobres, burgueses ou proletários não tiveram nunca, e assim não têm hoje, a paisagem, a arquitectura, os museus, as bibliotecas, e as orquestras que têm as outras nações europeias com a mesma longa história.
O segundo factor diz respeito à apropriação do poder económico e cultural pelos empresários, após o triunfo da primeira revolução industrial. Como disse atrás só nesta altura foi proposto o conceito de Estado de Cultura, com o fim de prover à realização de uma política de cultura nacional, a qual incluía a definição, o tratamento e a conservação de todo o elenco do património cultural. Em Portugal a inexistência da nobreza como classe de cultura e o aparecimento tardio de uma classe empresarial, mas de origem proletária, tornaram impossível a realização de uma tal política.
Assim, Portugal está na situação da princesa da ópera Ariana em Naxos: a nós também só nos resta esperar pelo dia em que Bachus desça e anule o desfavorável oráculo que paira sobre a nossa cultura.». p.p.141, 142, 143.
9 comentários:
«A incultura é uma característica comum que une todas as classes sociais portuguesas (...).»
Não podia ser mais verdade!
Gosto muito de ensaios. Muito, mesmo. Ensaios, diários, autobiografias, livros de notas. Houve um tempo em que era raro conseguir ler um romance até ao fim. Julgo que me cansei. Nessa altura virei-me para os ensaios. Muito provavelmente escolhia mal os romances, mas ganhei gosto pelos ensaios. Nunca é tudo mau... :-)
Pois...escolhi este extracto "a dedo", claro. :)
Também gosto muito de Ensaios. Como com a poesia, não passo sem eles: dão-me vibração mental.
E não escolhe tudo? :-)
Brinco, claro, é evidente que escolhe e por isso mesmo «lê-la» dá-me vontade de ler os livros. Fica já dito, por todas as vezes que me esquecer de dizer, como aconteceu desta, e por todas as vezes que me abstenha de o fazer, para não correr o risco da repetição e de alguém tomar isto por troca de amabilidades e cortesias vazias, porque não são.
Outro abraço.
que belíssimo ensaio...
o reflexo ou melhor o ecos do funcionário bancário reformado e suadosista do estado novo que ouvi no outro dia a falar contra os intelectuais, as socialites que desdenham a lieratura a cultura e quesão incapazes de proferir uma frase inteligente, o virar da cara das madames que veste marcas caras enunca leram uma frase de josé saramago...
tudo isto vejo eu reflctido neste ensaio que
tão bemdecidiste publicar.
csd
Está registado, Contador... :)
Obrigada
Um abraço
TSC
Sabes, Cláudia, esta "pequeníssima coisa" (que me levou a publicar esta nota sobre «Os Degraus do Parnaso»,) de livrarias "responsáveis" declararem aos leitores (eu testei isso em duas Fnac, onde me disseram o mesmo), com douto e irrepreensível conhecimento, que a obra está esgotada, entronca na displicência geral com que se tem a nossa cultura, neste extracto tão brilhantemente mostrado.
É que estas práticas quotidianas "mexem-me" com os nervinhos... :)
Beijo
T.
Então e a obra filosófica de M. S. Lourenço?
Muitos dos seus escritos filosóficos não são fáceis, mesmo para quem sabe alguma coisa de filosofia, pois são reflexões onde se regista uma mistura que poucos dominam: filosofia e matemática.
Seja como for, o maior contributo de M. S. Lourenço para a filosofia e para a cultura portuguesa talvez tenha sido a tradução de alemão para português do Tratado Lógico-Filosófico e das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
Certíssimo, Carlos. M.S. Lourenço é autor de «A Espontaneidade da Razão», editado pela INCM e «Teoria Clássica da Dedução», pela Assírio e Alvim, além de ter traduzido o «Tratado Lógico-Filosófico e as Investigações Filosóficas» de Ludwig Wittgenstein. Todavia, não conheço estas obras... por enquanto.
Não obstante, tem razão, poderia ter registado isso na nota. Fá-lo-ei.
Gratíssima.
Um abraço
TSC
Teresa:
Vale de facto a pena referir algumas obras filosóficas de MS Lourenço, não para a lista ser exaustiva, mas para mostrar a sua rara abrangência intelectual: matemática, filosofia, poesia, romance, ensaio, tradução, etc.
Enviar um comentário