
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Zeca Afonso por Viriato Teles

Saudosa tertúlia

Se aquela entrevista é a última do livro, a abrir está a do outro nome português: a imperecível Amália Rodrigues. «Quando você quiser conversar e não tiver com quem, venha até cá. Já viu que eu falo muito», disse a diva do nosso Fado a Viriato Teles, na despedida da entrevista feita em 1983, por ocasião do lançamento do disco «Lágrima». Com o título «Humana forma de vida», lá está a Amália que conhecemos e a dar-se a conhecer aos que a desconheciam, porquanto o jornalista regista a forma de estar, os gestos, os esgares, a timidez, as hesitações e a comoção.
M.S.Lourenço e "O Caminho dos Pisões"

Gostaria de ir ao teu encontro,
Procurar-te na vila, entre as pessoas,
Ou debaixo da magnólia do jardim.
A cascata corre & tu sentas-te a ouvir
Ao acaso as folhas que o vento espalha.
No teu rosto já só vejo ar frio da serra,
As sombras dos que te abrem o caminho
Para que a cor do dia entre no jardim.
Faz com que a angústia nas palavras que usamos
Seja um bom presságio à nossa volta.
Tudo o que é divino é transitório,
Mas não o é em vão.
Nada Brahma, p.48 (livro incluído no O Caminho dos Pisões)
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Poesia reunida de António Osório

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Deixo 4 textos:
DESPOJOS
Amarras que se lançam ao fluxo das águas,
despojos, limos espraiados,
cabedelos que chegam e partem com o mar,
surgem os versos.
E tudo de roldão, angústia,
vida e morte, oculto movimento de plantas,
o equinócio do amor, que torna a noite igual ao dia,
a confiança, a luta, a respiração dos homens. (p.23)
***
ENTRAR contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra. (p.139)
***
VEJO teus olhos,
queria me convertesses
nesta perseverança de cego
esmoler, à porta do Metro,
dedilhando o seu livro
de bilros, e que não explica
nem vislumbra
a pertinácia irredutível da vida. (p. 143)
***
As Lavadoras
Quase todas são negras, fugidas de Angola. Mulheres novas e raparigas, com fatos de oleado e botas de borracha. De dia e de noite, por turnos, lavam os carros na garagem. Contemplo-as: na sua cor e no seu exílio. Entregam-se àquele duro trabalho, e eu admiro o contacto feminino com a água, o apuro, um rigor efectivo – os carros ficam luminosos como crianças saídas do banho. Ou como versos perfeitamente limpos de toda a dor. (p. 420)
Dom Quixote na aventura do futuro

© Teresa Sá Couto
(a um jovem avô)
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Myra: o encontro com a inquietação

Construído em torno da noção de voz, este romance da autora de Missa In Albis evidencia, também, o carácter dialogal de todo o discurso humano. Myra fala para o cão e pensa para o cão , o cão responde-lhe e aquiesce aos seus pensamentos. Ela não quer ouvir vozes, porque quer seguir em frente, mas não pára de as ouvir. São as vozes das raízes, vindas de longe, murmúrios do mundo que o homem escuta dentro de si e que nunca consegue calar. Myra ouve a voz da família, e benze-se “à russa” no encalço de uma força metafísica, que lhe dá, não conforto, mas ansiedade. Myra é, pois, o lugar onde repercutem as várias vozes do mundo e são elas que dão ao romance uma rima interna fortíssima.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Prémio Leya para João Paulo Borges Coelho

- será a vida um permanente campo de trânsito onde gastamos o tempo a desenvolver estratégias de sobrevivência com que iludimos o quotidiano? É esse um lugar que escolhemos ou é ele que nos escolhe, títeres existenciais? Como se sai de uma «interminável e pestilenta espiral»? O que somos além de cansaço depois de tanto caminho percorrido em vão?
Nascido no Porto, mas naturalizado moçambicano, João Paulo Borges Coelho é um dos grandes nomes da Literatura de Expressão Portuguesa. Depois de «Crónica da Rua 513.2 », título anterior e também editado pela Editorial Caminho, o historiador e escritor traz-nos em «Campo de Trânsito» uma alegoria da condição existencial através da personagem J. Mungau - que pode ser qualquer um de nós -, no chão de Moçambique - como pode ser em qualquer chão onde se deixa o sangue, sendo o chão uma metáfora da caminhada.
Nessa teia de tempos, sem se encaixar em nenhum, Mungau aprende o poder de alguns objectos – nomeadamente da faca que passa a deter e que vai ser um instrumento do destino –, perscruta as relações que o cercam, observa as diversas estratégias de sobrevivência. Para isso, o texto dá-nos uma galeria portentosa de personagens em interacção, com que se constrói o caos existencial: o Professor do Campo e a estranha Mulher do Professor – uma hortelã que vive no seu retalho de horta fustigando o chão com uma mão de dois dedos, uma tenaz, enquanto o marido divulga o conhecimento entre os prisioneiros –, os prisioneiros, os guardas, os feirantes que vão ao Campo uma vez por mês, o Chefe da Aldeia e a filha casadoira - a Desengonçada Garça -, o misterioso Vendedor de Chá.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Entrevista a Albano Martins
domingo, 11 de outubro de 2009
A Lusofonia no desafio da globalização

Na mesma linha de argumentação, António Guimarães Rodrigues, Reitor da Universidade do Minho, cita Confúcio: «“Se trocar uma laranja com outra pessoa que também possui uma laranja, cada uma fica com uma laranja. Mas, se trocar uma ideia com alguém que também tem uma ideia, então cada um fica com duas ideias”. Trocar opiniões, ideias e interpretações é mais do que trocar informação. E as ideias são diversas. Não se somam de forma conservativa. Constroem e criam novas ideias. A globalização que todos ajudámos e ajudamos a construir não significa o imperativo de nos despojarmos do que nos dá identidade. Antes pelo contrário, no conjunto dos valores e das promessas que nos atraem para a construção de um Mundo global, a diversidade das diferentes identidades funciona como elemento de ligação e garante a sua sustentabilidade.». Assim, sintetiza, «num tempo de globalização, em que o mote é a constituição de redes de conhecimento e cultura, os países lusófonos possuem-na, dela têm consciência, e querem promovê-la e atribuir-lhe um papel efectivo ao serviço do desenvolvimento».
Maria Manuel Baptista, docente na Universidade de Aveiro, lembra que o espaço da lusofonia é um «apetecível mercado de milhões de consumidores», além de que «o Brasil e os outros países lusófonos têm-nos como necessária porta de entrada noutros mercados e culturas ocidentais.». Assim, defende, cabe a Portugal defender o seu património secular, histórico, linguístico e cultural no mundo (…) pretende-se conferir à lusofonia (tal como outrora ao Império) uma lógica predominantemente afectiva e moral: cada parte não pode dar largas ao seu “egoísmo” e deve concorrer para o todo, para o bem comum.».
Se não podemos fugir à globalização, podemos defender-nos da invasão da língua da globalização, antecipando-nos aos seus efeitos, como defende Eduardo Namburete, docente universitário em Moçambique: «levar a cultura lusófona para o Reino Unido, Estados Unidos da América, Nigéria, Burundi, Singapura e outros cantos do mundo, a aposta na difusão internacional da cultura lusófona, através da massificação da produção cultural no nosso espaço de referência, ensino e formação do português deve ser uma estratégia prioritária da lusofonia.».
Comunicação e lusofonia – Para uma abordagem crítica da cultura e dos media; Editorial Campo das Letras, Porto, Dezembro 2006
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Sérgio Luís de Carvalho lança novo romance
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Os males humanos e a verdade de Brecht

As ruas do meu tempo conduziam ao pântano. A linguagem denunciou-me ao carrasco. Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
O que tem fome e te rouba /o último pedaço de pão chama-lo teu inimigo. /Mas não saltas ao pescoço /do teu ladrão que nunca teve fome.
Assim, a ordem é abrir os olhos e agir para haver equilíbrio na luta contra a injustiça que age de olhos bem abertos:
A injustiça avança hoje a passo firme. /Os tiranos fazem planos para dez mil anos. /O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são. /Nenhuma voz além da dos que mandam. /E em todos os mercados proclama a exploração: isto é apenas o meu começo. /Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem: /Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos. /Quem ainda está vivo nunca diga: nunca. /O que é seguro não é seguro. /As coisas não continuarão a ser como são. /Depois de falarem os dominantes /Falarão os dominados. /Quem pois ousa dizer: nunca?
Também a sátira brechtiana é desenrolada até ao cinismo, apesar do exílio do autor, quiçá por isso mesmo, e assume-se sem esconderijos para servir a pedagogia. Próprio de um homem de Teatro, a verosimilhança da mensagem - os comportamentos, situações, pessoas concretas - atinge certeira o leitor ou o espectador, no caso da dramaturgia, porque é a eles que se dirige e é deles que se fala. E os poemas ora olham acutilantes o poder político, ora detêm-se denunciadores na insanidade da guerra:
Todos os dias os ministros dizem ao povo /Como é difícil governar. Sem os ministros /O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. / Nem um pedaço de carvão sairia das minas /Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda /Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra /Nunca mais haveria guerra. E atrever-se-ia a nascer o sol /Sem a autorização do Führer? /Não é nada provável e se o fosse /Ele nasceria por certo fora do lugar(…)
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(…)De pé à sua volta à hora de morrer / – Nós todos. /E /Lá estava também a mulher que o dera à luz /E que não disse uma palavra quando o levámos. /Que essa mulher seja estripada! /Amem. /Mas quando o matámos tratámos /De transformar o seu rosto /com as marcas dos nossos punhos. /Assim o tornámos irreconhecível /para não o darem como filho de algum homem. /Fizemo-lo sair do aço. /Trouxemo-lo para a cidade. /Enterrámo-lo sob uma pedra e sob um arco chamado /Arco do Triunfo /que pesa 1.000 quintais para que /O soldado Desconhecido /Não se levante no dia do Juízo Final /E irreconhecível /Mas de novo e para sempre na luz /Não vá diante de Deus /Apontar-nos a nós, os reconhecíveis, /À Justiça.
© Teresa Sá Couto
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
«A Morte de Portugal»

«em nome de um orçamento metafísico e de uma canina imitação do pior da Europa, terão sido eliminados por este os curtos direitos ganhos pelas populações desde o 25 de Abril de 1974 (ter escola na sua terra, ter maternidade na sua terra, ter assistência hospitalar na sua terra, ter dinheiro suficiente para ir ao dentista, ter reforma garantida). É um Portugal solto, desregrado, cheirando alarvemente a dinheiro, os ricos por o terem, os pobres por o desejarem, todos por nas “Índias” o espreitarem, isto é, na mirífica Europa.».
Este é um «ensaiozinho despretensioso e reflexivo de horas nocturnas», no dizer do próprio ensaísta, texto ágil, acutilante, intervencionista, predicados para um prazer incomensurável de leitura, dizemos nós. Em 123 páginas, com Introdução, três capítulos e um Índice Onomástico, Miguel Real consulta 800 anos de política, mentalidades, História da Cultura e História das Ideias para desembocar nas actuais páginas de jornais onde corre a narrativa sobre quem somos e em quem nos estamos a transformar. Sobre o resultado do comando do Estado por «títeres janotas que transfiguram a nobre arte da política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios casuais», «uma nova geração de engenheiros e economistas totalmente desprovida de espírito histórico», escreve o ensaísta:
«Portugal permanecerá, na sua posição relativa face aos países mais ricos da Europa, como se encontra desde o reinado de D. João III, na base da tabela», com um «povo pobre, analfabeto e supersticioso. (…) É o Portugal de D. João III (menos de 30 anos depois de D. João III tínhamos sido condenados à inexistência por Castela), o Portugal do “Nada para que caminhamos” de Marquesa de Alorna, um Portugal merecedor de um Gil Vicente, que infelizmente não o há. É a orgia báquica dos técnicos cinzentos e dos políticos janotas antes da grande derrocada, como aconteceu na segunda metade do século XVI e na passagem entre os séculos XVIII e XIX.». Invocando o nome grande das letras portuguesas que também designa o Dia de Portugal, escreve o ensaísta:
«Camões, de facto, merece ser o símbolo do povo português – homem azarado, poeta pobre, brigão, mulherengo, condenado pelo Estado, perseguido pela igreja, nunca terá frequentado a Universidade (“saber de experiência feito”), migrante do Império, ora aqui, ora acolá, a sua vida, como a de Fernão Mendes Pinto, reproduz a vida dos portugueses que nunca beijaram a sombra do Estado, adversa às elites reitoras do Poder.».
Desenhando os quatros pontos cardiais por que Portugal se tem movimentado na sua História, Miguel Real apresenta quatro complexos culturais. O primeiro, da ORIGEM EXEMPLAR, é o complexo viriatino, que «emerge na segunda metade do século XVI», radicado na imagem de Viriato, «herói impoluto, puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro» que só pela traição é derrotado.
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O segundo, o da NAÇÃO SUPERIOR, o complexo vieirinho, que irrompe depois de D. João III, Alcácer Quibir e a decadência do Império, com o Padre António Vieira a semear a esperança, anunciando-nos o Quinto Império «dourando-nos o futuro com o regresso anunciado às glórias do passado», e que «nos determina a desejarmos mais do que nos pedem as forças e nos exigem as circunstancias, pulsao social que orientou as caravelas portuguesas;»
O terceiro, da NAÇÃO INFERIOR, o complexo pombalino, radicado no ímpeto de Pombal, o da nação humilhada pelo seu atraso e sequiosa das luzes europeias, «hoje acefalamente política dominante do Estado português, que a segue como “bom aluno”.
Por fim, o do CANIBALISMO CULTURAL, o complexo canibalista, «que alimenta o desejo de cada pai de família portuguesa de se tornar súbdito do chefe ou do patrão, “familiar” do Tribunal da Inquisição, sicofanta da Intendência-Geral de Pina Manique, “informador” de qualquer uma das várias polícias políticas, carreirista do Estado, devoto acrítico da Igreja, histrião da claque de um clube de futebol, bisbilhoteiro do interior da casa dos vizinhos, denunciador ao supremo hierárquico», aludindo-se, na actualidade, à «perseguição a funcionários públicos rebeldes pelos poderes partidários instituídos pelo governo de José Sócrates/Cavaco Silva.».
«Se a vitória europeia de Portugal se consumar, terá sido a geração nascida entre 1940 e 1960 a matar D. Sebastião pela segunda vez», diz, sem que, no entanto, antes desafie:
«Resta aos homens de bem virarem as costas a esta nova elite tecnocrática que assaltou e se apoderou do Estado português (..) e, se puderem, emigrarem, clamando que aos homens-técnicos leva-os o Tejo e o Douro nas enxurradas de Inverno, os homens-cultos, esses, permanecem, recriando a nova imagem literária, estética e cultural por que Portugal posteriormente se reverá no espelho da História.».
A Morte de Portugal, Miguel Real; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007
© Teresa Sá Couto