terça-feira, 13 de janeiro de 2009

«O Retábulo de Genebra»

Com escrita delicada e vigorosa, Sérgio Luís de Carvalho traz-nos O Retábulo de Genebra, o seu sexto romance, que se segue aos As Horas de Monsaraz (1997), El-Rei Pastor (2000), Os Rios da Babilónia (2003), Retrato de S. Jerónimo no Seu Estúdio (2006) e Os Peregrinos sem Fé (2007).

Com enfoque no retábulo «A Pesca Milagrosa» de Konrad Witz, tido como a primeira paisagem realista da História da Arte, pintado em 1444, em pleno «gótico flamejante», Sérgio Luís de Carvalho urde um Romance Histórico sobre os encadeamentos da memória e da arte. É que, se o campo da pintura é o espaço, o autor mostra-nos que o campo da Literatura é o tempo, onde tudo se conjuga, se resgata e actualiza o passado, se casam realidade e efabulação. Outrossim, nos trilhos do tempo, o autor revela-nos a Literatura como peregrinação – Leitmotiv da sua escrita –, feita com trabalho árduo, rigoroso, depurado, inquiridor da condição humana, em permanente busca interior. A metáfora da escrita como peregrinação, onde não falta a homenagem aos companheiros de caminhada, surge sintetizada na vieira dos romeiros de Santiago, que vão «pagar promessas, carpir pecados e cumprir penas», clara neste, mas já fortíssima no romance anterior.

Método e conteúdo contaminam-se, iluminando-se. A narrativa é circular, de acordo e ao sabor das erupções da memória. A trama inicia-se e termina em 1535, com a destruição de imagens em igrejas de Genebra, no ensejo das lutas entre papistas e protestantes, com vantagem para os iconoclastas adeptos de Lutero e de Calvino. Particularmente, está em causa o Retábulo de Konrad Witz, constituído por cinco painéis: o de S. Pedro, Apresentação de Metz perante a Virgem, Libertação de S. Pedro, Adoração dos Magos e A Pesca Milagrosa, este, o único a ser salvo, uma misteriosa salvação, que Sérgio Luís de Carvalho diligencia solucionar: ela deve-se ao olhar inovador e moderno do pintor que cria uma cena bíblica nas «margens galileias da Suiça», como se o Léman fosse o Tiberíades, com a paisagem e as gentes humildes de Genebra «figurantes de um enorme retábulo sacro», como se os Apóstolos fossem pescadores daquela cidade, dando ao espectador o sentido de pertença daquele lugar pictórico e real, que é proibido destruir.

De memória em memória, recua-se até 1400 – nascimento de Konrad Witz –, e no caminho de mais de um século, reconstrói-se o ambiente da Guerra dos Cem Anos, as façanhas, aprisionamento e execução de Joana d’Arc e os «tempos perturbados» do Consílio de Basileia. De memória em memória, mostra-se a tradição setentrional da pintura realista, a competência antiga da pintura flamenga na criação de fundos paisagísticos, bem como o espantoso passo com a ênfase sobre a actividade humana que a separa da ideia de paisagem pura.

E Sérgio Luís de Carvalho representa-nos a nova concepção de pintura com novos fundamentos literários: oferece-nos quadros narrativos belíssimos, pictóricos, prenhes de sinestesias e silêncios – os silêncios onde se conjuram memória e arte –, e na arte desta escrita os silêncios soltam os sons, as cores e todas as sensações: o som da turba ora orgulhosamente azafamada, ora inquieta, «o ruído cavo e fundo da cidade a mexer-se», a luz que «lava e limpa» o estúdio de Witz, o cheiro das maçãs viçosas que repousam no parapeito da janela, o cheiro a tinta, o «cheiro antigo» que envolve a oficina. «A memória é uma coisa muito estranha», conclui-se a cada assalto dela, «à qual basta apenas um vislumbre, um esgar desvendado na distância, uma cor, um sentimento, qualquer coisa à qual pouco baste para surgir. E será o bastante».
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A escrita como peregrinação interior

Exímio, Sérgio Luís de Carvalho mostra-nos a escrita como peregrinação interior num processo metafórico sedutor, que esconde e oculta: passa o espaço exterior, moldado pela memória, para os olhos do pintor – «talvez os olhos de um pintor sejam diferentes, ou talvez apenas busquem o que estão ensinados a descobrir» –, que o comunicam à mão que pinta. Porém, a memória é «feita de encadeamentos», encadeia tudo, até a escrita e a pintura, mas cabe à escrita o papel organizador. E «a memória confunde tudo, mescla tudo, com tintas misturadas numa paleta» ou numa vieira de Santiago, que «cabe na palma da mão aberta, o interior liso e suave» com uma «boa base para misturar tintas», que a escrita organiza, com paciência, dedicação e esforço. Um «quadro estranho e desacostumado» formava-se à frente do pintor que olha, fixa e compreende: «não é um raio fulminante disparado por qualquer musa que o atinge, não é uma coisa súbita e sonante, não é um momento isolado do seu mundo. Há uma ordem muito velha nestas coisas, um caminho de trabalho feito desde há muitos anos. Konrad sempre soube que encontraria se buscasse, sempre assim foi. As musas não são para aqui chamadas, o esforço, sim.» (p. 52).

A voz da peregrinação funda e antiga é, também, representada na personagem Gex, rapaz vagabundo, que o pintor recolhe na rua e que passa a ser o seu ajudante: «os dedos do miúdo seguram o carvão com força a mais, é um pouco desajeitado, pois claro, afinal o que é que se esperava? Contudo, naquele corpo torto por anos de pé boto e mau destino, reluz ainda um instinto muito antigo, um instinto que vem dos tempos mais arcaicos e que se não ensina. O mesmo instinto que leva os animais a temer o fogo, que leva os carrascos a chorar perante a imagem da Madona, que leva o vulgo a prostrar-se defronte de um belo quadro e que leva um pintor a perceber que um moço vadio de Genebra entende arte, ainda que não saiba sequer o que isso seja.» (p. 152).

Ao poder tocar no retábulo, o rapaz seria um «peregrino chegado finalmente ao seu destino», depois de «caminhar por tanta estrada». Ao transportar ao pescoço a vieira dos romeiros da Galiza dada pelo mestre Witz, que a recebeu do seu mestre Jan van Eyck, Gex garante a passagem do testemunho da corrente peregrina.

Se a Galiza ressurge em mais um romance de Sérgio Luís de Carvalho como marca duma dedicação antiga e correspondida com os leitores galegos, que recebem os livros do escritor ao mesmo tempo que nós, a homenagem aos companheiros de caminhada contempla também Sintra, no ensejo da comitiva flamenga de Filipe de Borgonha à corte de D. João I, vila com azulejos amouriscados e a serra em torno dela «mais saída de algum cantão suíço que das paragens ibéricas», com «gente oscilante entre entusiasmos pueris e melancolias fundas», patentes nos «versos lânguidos» dos velhos trovadores, «como se sofrer, partir e morrer estivesse gravado a fogo na alma desta gente». Uma alma Ibérica antiquíssima que tem na Literatura Portuguesa e em Sérgio Luís de Carvalho um seu ilustre representante.


Sérgio Luís de Carvalho, O Retábulo de Genebra, Campo das Letras, 2008

Nota: texto editado no sítio da Orgia Literária em 03.01.2009

© Teresa Sá Couto

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