terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Esperança num «céu cheio de terra»

«Basta a miséria dum desgraçado, para que todos nós sejamos miseráveis», escreveu Teixeira de Pascoaes. Max Tilmann mostra-nos isso, não com palavras, mas com o silêncio inquietante das suas pinturas. Por isso, interroga-nos no lugar fundo, onde rasteja o medo, a indiferença, a crueldade, o horror. Onde se esconde a verdade da nossa condição e de como nos relacionamos com a Humanidade.

Com a chegada do novo ano, e os costumeiros votos de paz, esta é a reflexão mais sólida que motiva o gesto. Um livro sobre a memória da barbárie humana, outrossim sobre a fé, com o mote e justificação do profeta Jeremias: «Lembrai-vos dos meus tormentos e misérias, que são para mim absinto e veneno. Ao pensar nisto sem cessar, a minha alma desfalece dentro de mim. Eis porém o que hei-de recordar para recuperar a esperança.».

Nascido na Alemanha em 1955, mas a viver em Londres desde 1985, o pintor e dramaturgo Max Tilmann apresenta-nos cinquenta e duas imagens que se sucedem em degraus de descida ao horror. Estão agrupadas por capítulos, correspondendo a cada um uma letra até se formar a palavra maldita: Auschwitz.

Todavia, se aquele campo de extermínio nazista está sempre presente, as figuras que representam corpos de um destino sem Deus projectam a mensagem para muitos outros cadafalsos, erguidos com o mesmo zelo sanguinário, que tão bem conhecemos e que teimamos, por incómodos, ocultar: o genocídio dos Arménios pelos Turcos, Hiroshima e Nagasaki, o Camboja de Pol Pot, os massacres étnicos no Ruanda, Srebrenica ou a barbárie no coração da Europa…; os buracos de caveira que procuram os nossos olhos, os ombros caídos rendidos à falta de céu, os rituais na espera do inferno, seres humanos estropiados, crianças com cotos no lugar dos braços (imagem em cima), como as crianças de Angola, como todas as crianças assim consequência da blasfémia dos adultos que deveriam protegê-las…

O dever de lembrar, a obrigação de agir

«Não pinto o que vejo mas o que vi; a câmara fotográfica não poderá rivalizar com a pintura enquanto não for possível servirmo-nos dela no céu e no inferno», disse Edward Munch. Também Tilmann pinta a memória, com carácter testemunhal, num grito de alarme contra o olvido e a indiferença do homem frente ao seu semelhante, pois a indiferença é a condição sine qua non para a violentação humana e que Fernando Pessoa escreveu assim:

«o que parece haver de desprezo entre homem e homem, de indiferente que permite que se mate gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao facto, parece que abstruso, de que os outros são almas também.».

O recurso a aguarelas, com o seu carácter a um mesmo tempo perene e fugidio, concorre para se fixar a ignomínia humana numa luta com a volatilidade da memória. Também a antinomia que se estabelece entre a delicadeza da aguarela e o horror que as tintas matizam contribui para a comunicabilidade inquietante das imagens. Torna-se evidente que todos os gestos do homem visam a Humanidade. Todos: os gestos dos carrascos sobre as suas vítimas, os que o testemunham, mas também os que não o testemunham, mas deveriam sabê-lo, pois o que ignora a humanidade avilta-a e avilta-se.

À procura das almas que ficam

Livro que folheia a alma com um baque, «Este céu cheio de terra» faz-se com uma narrativa de dor silenciosa, mas não silenciada. Acompanha-se o recolher de gente – sob a ameaça da espingarda usurpadora – que segue com as suas trouxas, e filhos pela mão, parcos haveres numa procissão maldita até camiões ou comboios. E surgem em movimento, esses túneis da morte que se apressam sobre carris para desembocarem no terminal de Auschwitz, onde ressumam todos os fins de linha de massacres humanos. Isso é-nos evidenciado pela geometria do abismo construída pela confluência de vários carris numa via única, na entrada daquele campo.

No espaço sepulcral é feita a divisão dos prisioneiros, mais corpos do que almas – porque estas parecem já estar mortas –, preparam-se os prisioneiros ao mesmo tempo que se aprontam os chuveiros onde serão gaseados, as forcas que ostentarão os espectros silenciosos, mas que nos chegam, entre a prece e o grito, aturdindo-nos.

Vertigem, angústia, violência, brutalidade, grotesco, blasfémia: eis o que nos dizem as sombras. Sombras das vitimas, sombras dos seus algozes brancos, sombras dos comboios, dos tanques, e até as sombras das nuvens que baixam à terra ou as sombras da terra que sobem ao céu…No interlúdio, imagens de paisagens onde irrompe a floresta, uma igreja ou a amálgama de cores, todas espaços da alma que observa e cisma nas suas sombras, mas também na metamorfose das árvores...

Este Céu Cheio de Terra, Max tilmann; Editorial Campo das Letras, Porto, 2006

© Teresa Sá Couto

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