A dor é um lugar largo. Pelos sentidos, ela expande-se ao exterior do corpo, tomando, adicta, sempre novos territórios. Quando a dor encontra a palavra certa, esta passa a ser um instrumento ao seu serviço e um lugar onde passa a habitar. «Em Carne Viva» é um livro do israelita David Grossman, com a morfologia da dor no seu interior, desenhada nos seus nervos pujantes, no labirinto, na exaustão.
Raramente a literatura falou assim da dor. Muito raramente uma dor literária tem tido o poder de se comunicar com a dor sentida de cada leitor. «o amor é que tu sejas a faca com a qual eu escavo dentro de mim», escreve Miriam na sua embriaguês amorosa por Yair, o homem que iniciou o jogo perigoso entre os dois: uma fantasia assente apenas na correspondência trocada entre ambos, que, lesta, lhes desnuda as almas, abre cicatrizes, e a carne viva das palavras esmiúça os sentimentos até à loucura. Com a chancela da Campo das Letras, esta é uma estranha história de amor intenso, pungente e inquietante que o leitor dificilmente esquecerá.
Editado há pouco em Portugal, traduzido do hebraico por Lúcia Liba Mucznik, este «Em Carne Viva» foi escrito em 1998 e vem juntar-se a outras obras carismáticas de David Grossman publicadas pela Campo das Letras. Se a densidade psicológica e a escrita depurada são marcas do autor, este novo título acrescenta-lhes uma original construção narrativa em três partes: primeiro, as cartas de Yair, um vendedor de livros raros, com 33 anos, casado, pai de um menino de cinco anos, mestre de vida dupla, a Miriam, uma professora com 40 anos, casada e com um passado de dor, cujas cartas se coligem na segunda parte do romance; na terceira e última parte, Chuva, surge o frémito, a transgressão às regras que os dois tinham estabelecido, e o clímax trágico da água da realidade.
Yair repara em Miriam numa reunião da Escola, sem que ela repare nele. O homem põe então em prática o «jogo louco» enviando-lhe uma carta arrebatadora. As regras são definidas: encontrarem-se «não num lugar, mas num tempo», criarem uma «intimidade anónima», conhecerem-se apenas na pele das palavras, sem nunca se verem ou ouvirem, para não serem contaminados pelo real, «os dois na mesma água» de uma fantasia com prazo de uns meses, até se esgotar o encanto. Mas os «repuxos da água» são indómitos e, carta após carta, «as folhas abrem caminho umas às outras», com doações de alma, gestos do dia-a-dia, o diário de uma obsessão, a partilha de segredos inconfessados, as promessas de pele gritadas pelo desejo, deixando-os cada vez mais nus e dependentes das palavras um do outro:
- «Não pares de escrever, agarra-te à caneta com toda a força que te resta, tremes de tensão, mas escreves, cria raízes em mim, não tenhas medo»; «eu entreguei-te um verme e tu fizeste dele um homem. São as mesmas peças, mas melhoradas»; «ajuda-me a acalmar-me. Estende-me uma mão, um dedo basta-me, preciso que agora, neste preciso momento, sejas o meu pára-raios», escreve Yair.
- «Não quero que sejas o meu pára-raios. Porque havias de ser a prisão dos meus relâmpagos? Pelo contrário, estás a ouvir? Vem cá e diz, sê a luz!»; «Escrevi na tua testa com o dedo (mas ao contrário, para conseguires ler de dentro)»; «Antes de ti, era uma dor surda e obscura, à qual talvez nem soubesse dar um nome claro, depositar-se-ia no fundo misturando-se com as outras mágoas da vida, mas tu chegaste e deste-lhe um nome e um vocabulário»; «não acho que tu sejas a pessoa que me pode curar da minha dor, Yair, mas se calhar, nesta etapa da minha vida, o que eu preciso não é de um médico, mas de alguém com uma dor como a minha», escreve Miriam no seu «calendário do efémero».
Breve e apoteótica, Chuva, a terceira parte da narrativa, levanta a questão reflexiva: Em que lugar se vive realmente uma vida plena? Na realidade ou na fantasia?
Num momento de desespero em casa, Yair telefona a Miriam, que, em aflição, corre para o ajudar, na exacta altura em que o céu de Jerusalém se desfaz nas primeiras chuvas. Quebradas as regras do anonimato, com a realidade a entrar definitivamente na bolha da fantasia, desaba sobre eles a água crua com rajadas invernais. É a chuva das lágrimas e da despedida, da confusão e da angústia, a chuva que separaria as palavras misturadas dos oito meses de devaneio a dois, a chuva do enigma da alma humana no seu confronto dilacerante com o sofrimento. Para conferir, nas 301 páginas de uma leitura esmagadora que não permite paragens.
Em Carne Viva, David Grossman; Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro 2007
Yair repara em Miriam numa reunião da Escola, sem que ela repare nele. O homem põe então em prática o «jogo louco» enviando-lhe uma carta arrebatadora. As regras são definidas: encontrarem-se «não num lugar, mas num tempo», criarem uma «intimidade anónima», conhecerem-se apenas na pele das palavras, sem nunca se verem ou ouvirem, para não serem contaminados pelo real, «os dois na mesma água» de uma fantasia com prazo de uns meses, até se esgotar o encanto. Mas os «repuxos da água» são indómitos e, carta após carta, «as folhas abrem caminho umas às outras», com doações de alma, gestos do dia-a-dia, o diário de uma obsessão, a partilha de segredos inconfessados, as promessas de pele gritadas pelo desejo, deixando-os cada vez mais nus e dependentes das palavras um do outro:
- «Não pares de escrever, agarra-te à caneta com toda a força que te resta, tremes de tensão, mas escreves, cria raízes em mim, não tenhas medo»; «eu entreguei-te um verme e tu fizeste dele um homem. São as mesmas peças, mas melhoradas»; «ajuda-me a acalmar-me. Estende-me uma mão, um dedo basta-me, preciso que agora, neste preciso momento, sejas o meu pára-raios», escreve Yair.
- «Não quero que sejas o meu pára-raios. Porque havias de ser a prisão dos meus relâmpagos? Pelo contrário, estás a ouvir? Vem cá e diz, sê a luz!»; «Escrevi na tua testa com o dedo (mas ao contrário, para conseguires ler de dentro)»; «Antes de ti, era uma dor surda e obscura, à qual talvez nem soubesse dar um nome claro, depositar-se-ia no fundo misturando-se com as outras mágoas da vida, mas tu chegaste e deste-lhe um nome e um vocabulário»; «não acho que tu sejas a pessoa que me pode curar da minha dor, Yair, mas se calhar, nesta etapa da minha vida, o que eu preciso não é de um médico, mas de alguém com uma dor como a minha», escreve Miriam no seu «calendário do efémero».
Breve e apoteótica, Chuva, a terceira parte da narrativa, levanta a questão reflexiva: Em que lugar se vive realmente uma vida plena? Na realidade ou na fantasia?
Num momento de desespero em casa, Yair telefona a Miriam, que, em aflição, corre para o ajudar, na exacta altura em que o céu de Jerusalém se desfaz nas primeiras chuvas. Quebradas as regras do anonimato, com a realidade a entrar definitivamente na bolha da fantasia, desaba sobre eles a água crua com rajadas invernais. É a chuva das lágrimas e da despedida, da confusão e da angústia, a chuva que separaria as palavras misturadas dos oito meses de devaneio a dois, a chuva do enigma da alma humana no seu confronto dilacerante com o sofrimento. Para conferir, nas 301 páginas de uma leitura esmagadora que não permite paragens.
Em Carne Viva, David Grossman; Editorial Campo das Letras, Porto, Outubro 2007
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
"Em que lugar se vive realmente uma vida plena? Na realidade ou na fantasia?"
Uma belíssima questão. Sem resposta
Este livro é fabuloso. Li e reli no verão do ano passado.
Esmagador, é a palavra certa !
Obrigada Teresa ...
iv
Eu só o li uma vez. Mas não me saiu da cabeça durante uns bons tempos! Mais tarde ou mais cedo, retornarei a ele, é garantido.
Bjinhos
TSC
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