Respondendo a vários pedidos, deixo aqui este texto sobre o «Terceira Residência» de Pablo Neruda, obra editada pela Campo das Letras e que se segue ao «As Uvas e o Vento». A tradução é, uma vez mais, do poeta beirão Albano Martins. São poemas escritos de 1935 a 1945, no contexto da Guerra Civil Espanhola, do assassinato do poeta Frederico Garcia Lorca e da Segunda Guerra Mundial.
Assim, «Terceira Residência» não colige o tempo da Primavera, do florescimento, da esperança, como o «As uvas e o Vento». Esta é a residência ferida pela violência da guerra, do sangue, das «pústulas,» da dor e da revolta, das «agulhas do Inverno com rajadas,» chuvas e rios de «águas iradas». É o tempo dos poemas estrídulos que, furiosos, «ferem os silêncios» da morte, do sofrimento, da destruição: «De tudo o que fiz, de tudo o que perdi, /de tudo o que ganhei sobressaltadamente, /em ferro amargo, em folhas, posso oferecer um pouco.».
Com uma missão definida, cumprida com a palavra crua e cirúrgica, o poeta chileno é o arauto da carne torturada e fria, espia «debaixo da terra», a «terra final», cava «mais longe que os olhos humanos, /mais longe que as unhas do tigre», para impedir o esquecimento dos mártires, para repartir a dor pelo futuro, para que o sangue continue a viver, «indelével como o amor»:
«Vidas reclinadas junto da minha roupa como pombas paralelas, /ou contidas na minha própria existência e no meu som desordenado, /para tornar a ser, para aprender o ar nu da folha /e o húmido nascimento da terra na grinalda: até quando /devo voltar e ser, até quando o cheiro /das flores mais enterradas, das ondas mais trituradas /sobre as altas pedras, guardam em mim a sua pátria /para tornar a ser a sua fúria e perfume?».
Escrito em 1936 -1937, o poema «Espanha no Coração – Hino às glórias do povo em guerra» inclui-se na IV parte deste «Terceira Residência», gritando a ignomínia da Espanha fuzilada, empapada em sangue, a «Mãe natal, punho /de aveia endurecida, /planeta/ seco e sangrento dos heróis!», com a cadência do espanto horrorizado, o ritmo dos tombos dos corpos no compasso do poema, o soluço dos acossados - que só encontra solidariedade na poesia -, a traição denunciada com palavras de raiva:
Bombardeamento
Quem?, pelos caminhos, quem
quem, quem? Em sombra, em sangue, quem?
em brilho, quem,
quem? Cai
cinza, cai
ferro
e pedra e morte e pranto e chamas,
quem, quem, ó minha mãe, quem, onde?
****
Espanha pobre por culpa dos ricos
Malditos os que um dia
não olharam, malditos cegos malditos,
os que à pátria solene não adiantaram
o pão mas as lágrimas, malditos
uniformes manchados e sotainas
de acres, hediondos cães de cova e sepultura.
A pobreza era em Espanha
como cavalos cheios de fumo,
como pedras caídas do
manancial da desventura,
terras cerealíferas por
abrir, adegas secretas
de azul e estanho, ovários, portas, arcos
fechados, profundezas
que queriam parir, tudo estava guardado
por guardas triangulares com espingarda,
por padres de cor de rata triste,
por lacaios do rei de rabo imenso.
Espanha dura, país de macieiras e pinheiros,
os teus vagos senhores proibiam-te:
a não semear, a não parir as minas,
a não montar as vacas, ao ensimesmamento
dos túmulos, a visitar todos os anos
o monumento de Cristóvão, o marinheiro, a relinchar
discursos com macacos vindos da América,
iguais em “posição social” e podridão.
Não levanteis escolas, não façais ranger a crosta
terrestre com arados, não enchais os celeiros
com abundância de trigo: rezai, bestas, rezai,
que um deus de rabo tão grande como o rabo do rei
vos espera: “Ali comereis a sopa, meus irmãos”.
«Vidas reclinadas junto da minha roupa como pombas paralelas, /ou contidas na minha própria existência e no meu som desordenado, /para tornar a ser, para aprender o ar nu da folha /e o húmido nascimento da terra na grinalda: até quando /devo voltar e ser, até quando o cheiro /das flores mais enterradas, das ondas mais trituradas /sobre as altas pedras, guardam em mim a sua pátria /para tornar a ser a sua fúria e perfume?».
Escrito em 1936 -1937, o poema «Espanha no Coração – Hino às glórias do povo em guerra» inclui-se na IV parte deste «Terceira Residência», gritando a ignomínia da Espanha fuzilada, empapada em sangue, a «Mãe natal, punho /de aveia endurecida, /planeta/ seco e sangrento dos heróis!», com a cadência do espanto horrorizado, o ritmo dos tombos dos corpos no compasso do poema, o soluço dos acossados - que só encontra solidariedade na poesia -, a traição denunciada com palavras de raiva:
Bombardeamento
Quem?, pelos caminhos, quem
quem, quem? Em sombra, em sangue, quem?
em brilho, quem,
quem? Cai
cinza, cai
ferro
e pedra e morte e pranto e chamas,
quem, quem, ó minha mãe, quem, onde?
****
Espanha pobre por culpa dos ricos
Malditos os que um dia
não olharam, malditos cegos malditos,
os que à pátria solene não adiantaram
o pão mas as lágrimas, malditos
uniformes manchados e sotainas
de acres, hediondos cães de cova e sepultura.
A pobreza era em Espanha
como cavalos cheios de fumo,
como pedras caídas do
manancial da desventura,
terras cerealíferas por
abrir, adegas secretas
de azul e estanho, ovários, portas, arcos
fechados, profundezas
que queriam parir, tudo estava guardado
por guardas triangulares com espingarda,
por padres de cor de rata triste,
por lacaios do rei de rabo imenso.
Espanha dura, país de macieiras e pinheiros,
os teus vagos senhores proibiam-te:
a não semear, a não parir as minas,
a não montar as vacas, ao ensimesmamento
dos túmulos, a visitar todos os anos
o monumento de Cristóvão, o marinheiro, a relinchar
discursos com macacos vindos da América,
iguais em “posição social” e podridão.
Não levanteis escolas, não façais ranger a crosta
terrestre com arados, não enchais os celeiros
com abundância de trigo: rezai, bestas, rezai,
que um deus de rabo tão grande como o rabo do rei
vos espera: “Ali comereis a sopa, meus irmãos”.
Terceira Residência, Pablo Neruda; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007
© Teresa Sá Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário