sábado, 6 de dezembro de 2008

Genialidade intimidadora de William Blake

«O caminho do desmedido conduz ao palácio da sabedoria», disse o escritor, pintor e gravador inglês William Blake (1757-1827). Com talento inaudito, mas tido na sua época por loucura e bizarria, William Blake só alcançaria no futuro o acolhimento e o elogio da sua obra gravada em diversas, mas interdisciplinares, formas artísticas. Com sabedoria, anteviu a imortalidade quando disse: «Se o doido persistisse na sua loucura tornar-se-ia sensato».

No âmbito das comemorações dos 250 anos do nascimento do autor, a editora Antígona lançou o poderoso Songs of Innocence and of Experience, em português «Cantigas da Inocência e da Experiência». A edição bilingue, português e inglês, inclui todas as ilustrações do texto original, tudo precedido por um ensaio de Manuel Portela, responsável também pela tradução da obra. Um livro imprescindível.
Genial, intimidador, inquietante, libertário, humanista, crítico social – nomeadamente sobre a igreja inglesa, apontada com soberba pelo distanciamento que mantinha dos que mais precisavam do seu conforto –, Blake acabaria por ser reconhecido como a voz que propunha a mudança, inclusive pela Igreja Gnóstica Católica, que o santificou.

Manuel Portela fundamenta assim, brilhantemente, estas formas de ser expressas pela arte de William Blake:

«A um Deus zelador e acusador, cuja ira tem de ser aplacada através de sacrifícios, Blake contrapõe um Deus protector, sempre mais próximo das criaturas do que elas podem imaginar. Ao juízo castigador do primeiro contrapõe o amor solidário do segundo, com a sua mensagem de amor, misericórdia, justiça e paz. É no amor divino, de cujo acto gratuito brotaram todas as formas, que se encontra a condição de possibilidade do universo e da própria substancia humana. (…) Recusando o fetichismo da figura divina e as superstições eclesiásticas, reconhece na matéria humana a presença da transcendência, que ele próprio tenta hereticamente transubstanciar na gravura. Percebendo a dimensão política da revelação divina através de Jesus, afirma a necessidade de se quebrarem as leis – instrumentos da prisão do espírito e do corpo – para a afirmação da possibilidade de ser. Só deste modo está ao alcance do indivíduo a autodeterminação para uma vida livre da violência da dominação e livre do medo de si mesmo.».

E escreve assim o inconformado Blake, no poema «O pequeno vagabundo»:

Mãe, querida Mãe, a Igreja é fria,
Mas a Taberna é sã, alegre & quente;
Além disso, eu sei que me tratam bem,
Coisa que a gente lá no céu não tem.

Se na Igreja nos dessem cerveja,
E lume que nos consolasse a alma,
Era orações e hinos todo o dia:
Da Igreja ninguém se perderia.

Pregasse o Padre, bebesse & cantasse,
E nós como as aves na primavera;
A beata, que está sempre na Igreja,
Não vergastava as crianças traquinas.

E Deus, como pai contente por ver

Os filhos tão contente como ele:
Não falava em Diabo ou em Barril
Mas dava-lhe um beijo & roupa e bebida.

Sobre o carácter inesgotável das mensagens de Blake, adverte o tradutor sobre as limitações da tradução, pois «por baixo da forma impressa» continua a «ouvir latejar sons e sentidos que, com outro leque de escolhas, teriam levado o texto numa direcção diferente», e acescenta: «a ilusão de forma final dada pela palavra impressa na página contradiz o movimento sempre vivo e turbulento da linguagem».
É esse latejar inquietante, que mostra os dois lados da alma, que sentimos no magnífico poema «Uma árvore venenosa» (segunda imagem, à direita). Confira-se:

Com amigo me dasavim:
Disse-lho, à ira dei fim.
Desavim-me com inimigo:
Nada disse, cresceu comigo.

Com receios a fui regar,

Noite & dia sempre a chorar:
E o sol foram sorrisos,
E ardilosos avisos.

Foi crescendo noite e dia
Numa maçã luzidia,
Que inimigo cobiçou,
Sabendo quem a criou.

Veio roubar-ma ao pomar
Estando a noite a velar;
De manhã vejo-o bem morto
Junto à arvore do meu horto.


Cantigas da Inocência e da Experiência, William Blake, edições Antígona, Lisboa, Outubro 2007

© Teresa Sá Couto

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