Cidade secular, de «alma funda e poética», o Porto escreve-se assim com Agustina: «Está ela como que inclinada numa cordilheira, com ar cativo, as faixas das ruas parecendo pendentes do casario desigual. A luz é doce sobre os telhados dum vermelho estagnado. (…) tem toda ela uma forma, uma alma de muralha.(…) Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera reflectem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas. O sol parece baixo sobre a cidade segregada na pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos.».
Com dois quilos de peso e um sentimento incomensurável, o Álbum de luxo «O Sentimento do Porto», da Editorial Campo das Letras, colige textos de escritores portugueses sobre o Porto, acompanhados de um trabalho fotográfico portentoso. A selecção de textos é de Arnaldo Saraiva, as fotografias do sentimento são de Luís Ferreira Alves e o Design de João Machado. Para aproveitar na Feira do Livro do Porto, onde esta dádiva estará com 40% de desconto - Livro do Dia - em 14 de Junho. Recorde-se, ainda, que a Editora está em vias de desaparecer e com ela muitos e magníficos títulos que tem publicados.
Logo na abertura do Álbum, num convite directo ao deslumbramento, Jaime Cortesão apresenta o Porto com a sua teatralidade e ardência barrocas, o espectáculo dos sentidos que tem na invicta o acervo mais importante do país, com a arte barroca a atingir o seu apogeu. Ex libris, são muitos, exteriores e interiores de igrejas – com exuberante talha dourada –, dramatizações em azulejaria branca e azul e a inconfundível Torre dos Clérigos, monumento visual que apela a todos os olhares.
Eugénio de Andrade regista o carácter da «cidade de Garrett», sólida nas suas convicções, e o seu carácter secreto: «O Porto é a cidade mais fechada das nossas cidades (daí parecer tão secreta), e eu nunca procurei ganhar a sua confiança – sou um homem do Sul, tenho de repeti-lo; quando a conheci já pertencia a outras luzes, e outras sombras». Porém, rendido à cidade, o poeta fala na troca do b pelo v, «da digestão sonolenta das tripas e do lombo assado regado a verde tinto», da «desventrada vitalidade da sua população ribeirinha, onde o descaro da linguagem se mistura ao ruído dos socos», e da descoberta que se faz da cidade, devagarinho, para se lhe apreender a «intimidade recolhida e serena que os seus nevoeiros espessos frequentemente escondem.».
Com Armindo de Sousa atende-se «o Porto primitivo» que se perpetua «na memória de visitantes e residentes», quando há oitocentos anos era «um muro fosco e diminuto, lá no alto, em torno da Pena Ventosa», quando a «cidade era o Morro da Sé». Percorrer aquele muro, guiados pelo arrepio dos ecos do tempo é a proposta do autor e do fotógrafo da pedra perene.
Alexandre Herculano transporta-nos para o seu (deles: do escritor e da cidade) romantismo medieval, numa explanação apaixonada do «Porto dos finais do século XIV» e que ainda subsiste entalhado na moderna cidade.
Acompanhados por imagens do Teatro Nacional de São João – exterior e pormenores interiores – o leitor segue pela mão de Camilo Castelo Branco que desvenda o «Porto do século XVIII» e a vivência do dia 15 de Maio, quando ainda havia Primavera na cidade, numa crítica plena de actualidade: «Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. (…) Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a Primavera».
Almada Negreiros traz para «O Sentimento» o dinamismo e o colorido das gentes que se confundem com o movimento e a policromia arquitectónica das fotografias da Ribeira: «O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação á altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas».
Também Raul Brandão, entre fotografias do mar bravio a enrodilhar as rochas costeiras, redes e embarcações, detém-se no cenário líquido da cidade e faz brilhar o tesouro do mar que alimenta as gentes: «O fundo da catraia escorrega cheia de água e daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. É uma mescla de dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metálicos…»
Estes são apenas ínfimos exemplos do pulsar de alma que enche «O Sentimento do Porto» de inúmeros matizes e outros tantos mistérios, em 260 páginas. Um livro apaixonante, bilingue – português e Inglês –, em dádiva também aos forasteiros, porque o amor só se vive se partilhado!
Nota: Em 1981, o Porto atingia o pico de 327 mil habitantes, para começar logo a descer para 302 mil em 1991 e para 263 mil em 2001. De notar que as quatro freguesias da zona histórica do Porto – Sé, S. Nicolau, Vitória e Miragaia – perderam metade da população entre 1981 e 2001, passando de 28 mil para 13 mil habitantes.
O Sentimento do Porto / A Feeling for Oporto, antologia de Arnaldo Saraiva; fotografias de Luís Ferreira Alves; Editorial Campo das Letras, Porto, 3ª edição Janeiro 2001
Com Armindo de Sousa atende-se «o Porto primitivo» que se perpetua «na memória de visitantes e residentes», quando há oitocentos anos era «um muro fosco e diminuto, lá no alto, em torno da Pena Ventosa», quando a «cidade era o Morro da Sé». Percorrer aquele muro, guiados pelo arrepio dos ecos do tempo é a proposta do autor e do fotógrafo da pedra perene.
Alexandre Herculano transporta-nos para o seu (deles: do escritor e da cidade) romantismo medieval, numa explanação apaixonada do «Porto dos finais do século XIV» e que ainda subsiste entalhado na moderna cidade.
Acompanhados por imagens do Teatro Nacional de São João – exterior e pormenores interiores – o leitor segue pela mão de Camilo Castelo Branco que desvenda o «Porto do século XVIII» e a vivência do dia 15 de Maio, quando ainda havia Primavera na cidade, numa crítica plena de actualidade: «Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. (…) Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a Primavera».
Almada Negreiros traz para «O Sentimento» o dinamismo e o colorido das gentes que se confundem com o movimento e a policromia arquitectónica das fotografias da Ribeira: «O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação á altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas».
Também Raul Brandão, entre fotografias do mar bravio a enrodilhar as rochas costeiras, redes e embarcações, detém-se no cenário líquido da cidade e faz brilhar o tesouro do mar que alimenta as gentes: «O fundo da catraia escorrega cheia de água e daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. É uma mescla de dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metálicos…»
Estes são apenas ínfimos exemplos do pulsar de alma que enche «O Sentimento do Porto» de inúmeros matizes e outros tantos mistérios, em 260 páginas. Um livro apaixonante, bilingue – português e Inglês –, em dádiva também aos forasteiros, porque o amor só se vive se partilhado!
Nota: Em 1981, o Porto atingia o pico de 327 mil habitantes, para começar logo a descer para 302 mil em 1991 e para 263 mil em 2001. De notar que as quatro freguesias da zona histórica do Porto – Sé, S. Nicolau, Vitória e Miragaia – perderam metade da população entre 1981 e 2001, passando de 28 mil para 13 mil habitantes.
O Sentimento do Porto / A Feeling for Oporto, antologia de Arnaldo Saraiva; fotografias de Luís Ferreira Alves; Editorial Campo das Letras, Porto, 3ª edição Janeiro 2001
© Teresa Sá Couto
3 comentários:
A Campo das Letras vai acabar?????
pois, Hugo! A Editora está em processo de insolvência. Custa a crer, não é?
No início do próximo mês, saberemos o resultado disto...
Bjs
Teresa
Isso é muito mau! Para além da Leya já ter ficado com uma série de editoras importantes ainda mais isto :|
bjs
h
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