António Alçada Baptista: Laços de Tempo
António Alçada Baptista nasceu na Covilhã, em 29 de Janeiro de 1927. Começou a publicar depois dos quarenta anos. Da escrita fez um istmo onde confluem presente e passado, salvando a memória da voragem do tempo.
Recupera a infância passada na Beira (na fotografia), as mulheres com quem aprendeu o maior laço para a vida: o amor. É com a recordação, pão da sua alma, que se projecta no mundo: «Confesso que não desgosto nada de estar assim, a fazer de psicanalisado sem psicanalista, a tentar destrinçar a meada das herdadas construções do mundo que sinto enoveladas por dentro de mim.» Com uma escrita dialogante, leve e simples, desenovela a sua alma, e convoca-nos para seguirmos com ele em peregrinação à sua interioridade, à cor dos seus dias.
A escrita recuperadora da memória
A infância e adolescência são desveladas com portentosa carga emocional, porém com uma memória selectiva. Alçada não cultiva as situações de possíveis traumas, reservando-se guardar o que de positivo teve a sua infância: os afectos. Afinal, «No fundo, interessa-me a tarefa impossível dos poetas: tentar dizer o indizível.». Fala-nos da sua familia, da sua casa na Travessa da Barbacã, na Covilhã, nos amigos. (in A Cor dos Dias).
Fala-nos da tristeza e da solidão dos seus tempos de bibe como motores de aprendizagem, ou como um «jogo de infância já que fui criado a brincar com uma e com a outra e sou capaz de admitir que, se calhar, era uma brincadeira boa porque, detrás daquele jogo, talvez estivesse o melhor caminho que, nesse tempo, nos levava para dentro do peito, à procura do sentido da vida». Memoralista e reflexivo, romancista e novelista, a sua ficção é, no entanto, muito marcada pela sua experiência de vida. Pelas palavras o autor procura a paz, a serenidade a alegria, a vida que sem esta voz «ficaria sufocada e muda, dentro das entranhas do tempo».
As Mulheres e o Amor
As mulheres são os nós e os laços do afecto, a aprendizagem, a memória constante na reflexão da infância. São as tias, as criadas, amas, que “davam o carinho e a humidade que os homens não tinham para dar”. Em “Tia Suzana, meu Amor”, talvez a sua novela em que o tempo da memória vai mais fundo, pode ler-se:
«Não consigo zangar-me com a minha infância só porque ela estava cheia do carinho das mulheres, mas tudo o mais era uma vida de enganos. Os homens parece que queriam que eu fosse o que não eram, como se estivessem a redimir-se do poucochinho em que se tinham tornado.».
Um tempo em que não se falava do amor e do corpo, nem tampouco do desejo. Um tempo em que a mulher recebia pelas suas manifestações de carinho a frieza do preconceito masculino que aniquilava a exteriorização dos sentimentos. Diz a "Tia Suzana": «Um dia tive prazer e reparei que ele ficou surpreendido. Descobri que tinha que seguir umas certas regras: não podia mostrar-lhe o meu desejo porque ele não gostava e não podia fazer nada para lhe dar prazer(...)Como vês, a vida do meu corpo foi um bocado monótona...».
Foi com estas mulheres que experimentaram o amor sombrio e solitário que aprendeu o amor solar: amar deve ser «uma atitude de compreender e aceitar: é reconhecer os outros e respeitar a sua liberdade». Recusa o amor feito de sobejos, carregado com tudo o que não encontra outro lugar para se explanar: a solidão, as frustrações, a insegurança, o desejo de poder. Assim, defende que no amor ninguém pode ser dono de ninguém, negando a escravidão a que as mulheres da sua infância eram submetidas. A própria fidelidade deve ser exigida à compreensão e liberdade do outro: «a fidelidade ao respeito recíproco da livre singularidade do outro e do livre traçar do seu destino» (in O Riso de Deus). Não se entenda, no entanto, Liberdade por libertinagem, porquanto respeitar o outro é reconhecer que ele é livre e agir em conformidade com esse reconhecimento, esclarece-nos o autor.
Um homem Também Chora
Foi com as mulheres que aprendeu a renegar o preconceito sobre manifestações exteriores de enternecimento dos homens da sua infância. Em «Os nós e os laços» conta um episódio de um funeral onde era patente a divisão cultural entre o comportamento feminino e masculino: as mulheres choravam e os homens mantinham-se sérios. Na altura optou fazer de mulher, e chorou. Tinha escolhido a parte meiga e terna, a generosidade e a delicadeza, a ternura e o afecto, recalcados nos homens, pois assim lhe exigia a sua imagem pública.
Escolhendo a fragilidade, optava pelo poder maior: «As pessoas em geral, e especialmente os homens, não foram ensinadas a viver a radiosa epopeia da fragilidade. Ninguém nos disse que é nessa espécie de fragilidade que está a nossa marca e a nossa grandeza e que só ela nos desvenda o fantástico universo da ternura.». Ousamos acrescentar que "aprendeu a chorar" porque ousou ser feliz. Numa idade de Outono, num caminho sereno, o autor refere que quando lhe dizem ter muita sorte, responde «Nem imaginas o trabalho que me deu ter a sorte que tenho!».
Bibliografia consultada: António Alçada Baptista, in «Os Nós e os Laços»; «O Riso de Deus»; «Tia Suzana, meu Amor»; «O Tecido do Outono» e «A Cor Dos Dias». Todos os Títulos estão editados pela Editorial Presença.
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
É isso Teresa, vamos perdendo as figuras, literárias e humanas, que foram as nossas referências e nos ajudaram a construir a nossa personalidade. Dói muito .
Mas como diria Alçada Baptista: ... é a lei da vida .
Grato, Teresa, por esta partilha, serviu para me aproximar ao autor, cuja obra conheço mal... mas isso vai mudar! Fã da tua escrita me confesso! Bjs,
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