sábado, 13 de dezembro de 2008

O mundo habitável de António Drumond

«O preto, o branco e alguma cor»

Diz-se que uma imagem vale por mil palavras. Preferimos dizer que uma imagem cria mil palavras: é pelas palavras que damos forma ao espanto e à inquietação que uma imagem nos provoca quando nela habitamos. Na minha conhecida paixão pela fotografia, descubro António Drumond, fotógrafo que nos dá imagens, moradas de deslumbramentos e arrepios.

Ligado à inovação da «fotografia portuense e portuguesa» da década de setenta, Drumond chega-nos no livro antológico «O preto, o branco e alguma cor», com a chancela da Campo das Letras. Capa dura, forrada a tecido, com o nome do autor embutido, negra total, a guardar o intimismo do interior, primordial, cósmico e vital. Com textos de Bernardo Pinto de Almeida, que diz que o trabalho de Drumond foi fabricado lentamente, «despreocupado do tempo, porque se sabe feito de tempo», e de Maria do Carmo Serén que lhe reconhece uma «atmosfera alquímica», este Álbum de fotografias é um presente singular para emoções fortes.

O texto de Bernardo Pinto de Almeida, com o título «Tão Longe e tão Perto», contextualiza e faz uma retrospectiva do fotógrafo nascido no Funchal em 1936, residente no Porto desde 1959. Antecede o primeiro conjunto de fotografias que revelam o carácter contemplativo do fotógrafo, tido não por «um contemplativo qualquer, impedido de acção», mas alguém que «escolheu a via da sageza que passa pelo ameno de contemplar as coisas.». Mestrias de um artista raro que, defende-se, «ao grande ruído do mundo que o rodeia, preferiu desde sempre mergulhar no espaço interrogativo da sua própria solidão, apetrechando-se da capacidade» de «considerar a contemplação como processo interior do acto criativo».

Contemplação criadora e questionamento enformam as fotografias logo dos primeiros tempos, imbuídas por uma estética neo-realista que desvela, arrebatadoramente, «rostos humildes e quase resignados», apreende «o pulsar discreto» do que é simples, e «guarda, se não na memória, na imagem que o perpetue». Nos anos de 80 e 90, o fotógrafo seguiria por um sentido de paisagem «mas não para um paisagismo», criando imagens «metafísicas de espaços semi-abandonados, de paredes ou árvores que secaram, quase só texturas de telhados e muros puídos pelo tempo, tanto, ao menos como roupas de criança que fotografou em campos abandonados», «ruas esquecidas pela história», «acessos a lugar nenhum», «silhuetas difusas no nevoeiro», refere Pinto de Almeida.

O programa existencial de Drumond

Surpreendente nas fotografias de Drumond é a sua relação com o real, uma verdadeira experiência instaurada pela poesia que constrói um mundo interior, que é sempre uma tentativa de libertar o real. Neste sentido, o seu trabalho é um programa existencial. Surgem-nos retalhos do real, com cenas coadas pela neblina de um pesadelo evidenciando o mistério do olhar do fotógrafo, fulgurações que se erguem ante nós.

Nesta peugada, Maria do Carmo Serén, que assina o segundo texto intitulado «Espaço do tempo», fala de «Rendilhado de um olhar pleno» e «metáforas de ocultamento», com o fotógrafo a acrescentar «a sua sombra à sombra das coisas». A encenação e o jogo de contrastes entre luz e sombra, o grão que esbate os contornos, revela-nos as imagens cada vez menos imagens e mais telas impressionistas. Surgem pormenores de curvatura de corpos femininos, subvertendo o estatismo da fotografia, que passa a ostentar o movimento sensual e ondulante de corpos que falam. E tudo ondula: o corpo, o tecido inquieto sobre a pele, a comunicação que atinge o espectador.

Figura integrante do Grupo IF, Drumond manteve o tecnicismo fotográfico, mas «superou-se, pela abstracção crítica». No fim da década de 90, enveredava por outras experiências de composição, com «sobre-impressões» e colagens, fruto de uma «arte espantada com as possibilidades da sua própria invenção técnica, mais do que com o real que a despertava», refere Pinto de Almeida , «juntando o paradoxal e o imprevisto, como um jogo de dados e um punhal. Os fundos dos ecrãs negros testemunhando a noite, o âmbito do sonho», interpretando numa densidade enigmática a morbidez do mundo, nos manequins, nos espelhos, «como se nele enfim encontrasse o seu olhar uma outra forma de repouso.». Caminhos trilhados de um projecto existencial, que deixam no leitor o sobressalto e a lenta urdidura de descobertas indizíveis.

O preto, o branco e alguma cor, Álbum de fotografias de António Drumond com textos de Maria do Carmo Serén e Bernardo Pinto de Almeida. Design gráfico de Armando Alves; Editora Campo das Letras, Fevereiro de 2006

© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Anónimo disse...

Gosto do Drummond

Teresa disse...

Então tem bom gosto!!! ;)
TSC