segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Portugal inovador e retrógrado

Reedição de José Sebastião da Silva Dias

Editado pela primeira vez na revista Biblos, da Universidade de Lisboa, em 1933, o ensaio «Portugal e a Cultura Europeia (séculos XVI a XVIII)», de José Sebastião da Silva Dias, falecido em 1994, foi reeditado pela Campo das Letras, há dois anos.

Se é, em primeira instância, destinado aos estudiosos do tema, é impossível trilhar as suas páginas sem que bebamos delas o sentido crítico desta forma de ser português em constante tensão entre a magnificência de ideias novas e o enquistamento das ideias tradicionais e retrógradas que emperram aquelas e, por isso, o desenvolvimento cultural.
Com o rigor da academia, o excelso retrato de Portugal na sua relação com a cultura europeia na “primeira globalização” instigada pelos Descobrimentos, e o portento da reflexão que chega indemne à nossa psicologia, o ensaio de Silva Dias suscita-nos espanto, deslumbramento e alerta-nos para o seu carácter imprescindível.

No século XVI, assumindo uma «feição militante», o Humanismo, casado com as formas renascentistas, propunha o renovo de ideias, sentimentos e hábitos, colidindo com o legado da idade média, os «vícios didácticos da Escolástica», apontando, também, a «decadência religiosa da sociedade». As empreitadas ultramarinas dos portugueses lançam o país na efervescência inovadora, além de inscreverem Portugal no mundo. Numa primeira fase, o processo é apadrinhado e incentivado pela Coroa, exultante dos novos tempos.

No «zénite dos descobrimentos», lê-se, deu-se a convivência do país com os meios intelectuais de além-Pirinéus», e uma «afluência crescente de estrangeiros aos nossos centros comerciais e marítimos. Os primeiros a chegar foram os espiões, mareantes e homens de negócio, atraídos pela esperança de prémios e lucros fabulosos. Os turistas e letrados vieram logo a seguir.». Ao mesmo tempo, portugueses contactavam com as ideias de Erasmo, Budeo, Lefèvre d´Etaples, Luís de Vives, resplandeciam Galileu, Bacon, Kepler, Harvei, entre muitos outros chamados minuciosamente para as páginas deste Ensaio.
Porém, e concomitantemente, a reacção contra o espírito da renascença e da Reforma, anti-humanista e anti-luterana surgia célere. Se o régio Mecenas, D. João III, tinha nas universidades estrangeiras, sobretudo a de Salamanca, o modelo para a Reforma, a breve trecho foi vencido nos seus sonhos de renovo coagido pela força tentacular da igreja e seus processos inquisitórios que alarmavam para o “descambar dos comportamentos” e «progresso da heresia».

Se a introdução da Medicina na Universidade - com a criação das cadeiras de Anatomia e Cirurgia em Lisboa e Anatomia, Medicina e Cirurgia em Coimbra (1556-57) - reflecte a influência do espírito europeu, todavia a escolha errada dos professores, por mau aconselhamento do Rei, fez com que a Universidade entrasse em crise por não corresponder «ao espírito que animava os humanistas e homens de ciência mais esclarecidos». Também a entrada dos jesuítas em Portugal suscitou contradições de carácter ideológico. Em vez de constituir a antítese mental do Humanismo, o ensino jesuíta «aceitava-lhe os métodos e as reivindicações, ou seja, a reforma dos costumes e o renovo da cultura». De notar que a companhia de Jesus forneceu ao país teólogos, filósofos e humanistas de gabarito. Acusados pelos opositores de «místicos iluminados», pretendia-se, no fundo, «diminuir o seu império na formação da juventude e a sua insistência na purificação dos costumes».

Os portugueses «tinham de continuar cristãos e católicos», hasteavam as forças contrárias ao renovo. Surgia a censura inquisitorial – em 1540 surge o primeiro Rol de Livros Defesos, lista de obras suspeitas, para em 1624 surgir um índice expurgatório aumentado, com a regra nº 10 a proibir «quaisquer livros em língua inglesa, Flamenca ou Tudesca», além de advertências contra livros franceses e outros de «terras estranhas» –, e intensificava-se a hostilidade do Santo Ofício contra os pregadores favoráveis à reforma dos costumes e da piedade cristã. A sua actuação, refere-se, «radicava no temor que a sua capacidade pudesse perturbar almas, abrindo aos humanistas e luteranos uma passagem que a todo o custo se queria barrar. Foi isso que despertou os ânimos, empenhando a inquisição e a opinião pública dominante numa campanha de grande estilo contra o espírito da inovação.».

Aos poucos, os estrangeiros que cá leccionassem, abandonavam o país, talvez por receios de «desgraças ou incómodos, com que já Garcia da Horta se vira a braços e que talvez tenha influído na prudente indiferença de Pedro Nunes às ideias de Copérnico». Será nesta altura que se dará a primeira conhecida Fuga de Cérebros, enquanto que outros, enfrentavam em Portugal as perseguições do Santo Ofício, ou ainda outros, menos afoitos, ficavam por no país fechados no silêncio. Expoente máximo das letras portuguesas da época, D. Francisco Manuel de Melo, que «vegetou, anos e anos, em cadeias e degredos», apresentou os portugueses com as ideias castradas, recalcados e resignados às rotinas, «sempre receosos de toda a especulação, contentando-se de saberem o necessário para dirigirem condignamente suas acções de corpo e espírito, sem alguma mistura de supérfluas disciplinas». Também no século XVIII, Luís António Verney em «O Verdadeiro Método de Estudar», que caiu em Portugal «como uma bomba», apontava o nosso isolamento cultural e o erro de em Portugal se desprezarem «todos os estudos estrangeiros, e com tal empenho, como se fossem maus costumes ou coisas muito nocivas».

Todos constatamos que, em pleno século XXI, lá vão irrompendo das trevas forças ideologicamente retrógradas com o intuito de bloquear a dinâmica da evolução, quase sempre, e porque é a única metodologia que conhecem, com técnicas extremistas e hediondas. Se este Ensaio nos mostra os séculos de luta entre a luz e as trevas, para forte domínio destas últimas, também nos mostra que, por se conhecer aquele, o poder está na luz da nova sabedoria dos tempos.

Portugal e a Cultura Europeia (séculos XVI a XVIII), José Sebastião da Silva Dias; Editorial Campo das Letras, Porto 2006

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Theresa Castello Branco disse...

Teresa. Cá estou eu outra vez! Li com muito interesse a sua critica do livro de José S. da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, sec. XVI a XVIII), mas não posso deixar de fazer algumas observações sobre o trecho que se refere aos descobrimentos:
Não foi no “Zénite dos descobrimentos” que se deu a convivência do pais com os meios intelectuiais de além-Pirinéus, foi muito antes que essa convivência existiu, como não podia deixar de ser, já que o interesse pela navegação era geral em toda a Europa, e a navegação científica era aí estudada, coisa que em Portugal não se fazia. Tratei disso num pequeno trabalho intitulado “Tratado da Esfera e do Astrolábio, Proveniência e Data “ e antes, e com outra autoridade, esse aspecto da questão foi discutido por Barradas de Carvalho e o Dr. Luís de Albuquerque (Ver Joaquim Barradas de Carvalho Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira. Fundação C. Gulbenkian pg. XII). Os comerciantes eram essenciais, sem eles para que servia trazer produtos, que Portugal por si não consumia? Grandes casas de comércio italianas e alemãs estavam em Portugal muito antes dos descobrimentos. (Não era para lhes fazer favor, que os reis lhes conceiam extraordinários privilégios, era porque sem elas não se podia passar) A frase “turistas e letrados vieram logo a seguir” não me parece frase de ensaiista sério, e não concordo com esta visão primitiva dos espiões entrando em Portugal para espiar os feitos marítimos, sobretudo não concordo que se fale dessa forma um pouco infantil de um facto histórico. Os “espiões” eram os enviados dos reis da Europa, que enviavam para casa os seus relatos - os de Veneza eram conhecidos pela perfeição das suas informações - era a sua obrigação. É evidente que o que se passava no campo marítimo era de interesse dos príncipes europeus, e era comentado em cartas por comerciantes, e viajantes. Não se tratava de um conluio de alta espionagem. E não está provado que fossem precisos espiões, já que o caso da ocultação sistemática dos dados é mais que discutível. Um abraço Theresa S. de Castello Branco

Teresa disse...

Theresa,
muito obrigada pelo grandioso contributo que aqui dá. Com efeito, todo este Ensaio é "subversivo" na "leitura" da História - por isso, tive cuidado em transcrever essas expressões com as devidas aspas - fazendo jus à classificação Ensaio: o que levanta problemas, provoca discussão, obriga a olhar de novo para a História, confrontando os dados.

Estes que retirei são, talvez, dos mais visivelmente polémicos, mas o livro está pejado deles. Pessoalmente, deu-me um prazer desmedido acompanhar esta argumentação. Afinal, e sei que ambas partilhamos isto, a matéria histórica é um fascinante e nela somos sempre detectives. Precioso, para mim e para os nossos leitores "detectives" do tempo, é também essa referência ao seu “Tratado da Esfera e do Astrolábio, Proveniência e Data".

Muitos Beijinhos ;)

TSC

Anónimo disse...

Li um recentemente sobre esse período
Salomao, o elefante diplomata.
Lês numa penada; bem interessante. Vou tomar nota deste

Teresa disse...

Não li, mas pelo que ouvi falar esse é de natureza distinta do que aqui trago. Este é um Ensaio. Esse seu é um trabalho brasileiro? Certo?

TSC