quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A espiritualidade de Mário Castrim

«Se tenho mãos injustas. /Se traí meu amigo. /Se o opressor poupei /pagarei com a vida. /Mas julgai-me segundo o meu direito /segundo a inocência que possuo.». Assim, puro e cristalino, Mário Castrim desvelava-se no seu barro humano, na sua forma de vida.

Na madrugada de 15 Outubro de 2002, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, sucumbia a uma pneumonia. Tinha 82 anos e todos o conhecíamos por Mário Castrim, porém pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca. Partia, deixava-nos a saudade e uma imensa obra manuscrita. Lançando mãos a esse espólio, a Campo das Letras editou «Do livro dos Salmos»: são 150 poemas inéditos de Mário Castrim, escritos nos últimos anos de vida, ilustrados com belos desenhos de Rogério Ribeiro, artista plástico que nos deixou recentemente, pelo que este texto é uma homenagem aos dois grandes nomes que contribuíram para o enriquecimento da cultura portuguesa.

Todos o conhecíamos pela sua dedicação enquanto escritor, jornalista e crítico televisivo. Também foi manifesta a sua preocupação pelas novas gerações. «Na boca das crianças /está a nossa fortaleza», escreve nestes salmos. Para o público jovem, trabalhou na revista Audácia, onde se ensinavam valores e atitudes de vida, editou livros infantis, fundou o suplemento «Diário de Lisboa Juvenil».

Com «particular significado literário e religioso», segundo a escritora Alice Vieira, viúva de Mário Castrim, este «O Livro dos Salmos» foi escrito quando Castrim colaborava nas revistas «Além-Mar e Audácia» dos Missionários Combonianos, e «é-lhes dedicado.». Castrim revela nestes salmos um compromisso religioso que se prende com a condição existencial – revelando os enredos, os becos e as escolhas que fez na vida – e a procura do aperfeiçoamento espiritual:

«Os bons de coração estão faltando /entre os filhos dos homens. /Sobra a mentira, o engano, a dupla palavra. /E os humildes que sofrem? /E os gemidos dos pobres? /Eis nos levantaremos. /Prata fina sete vezes depurada.»;
«Por minha perfeição vou caminhando. /Põe-me à prova, se queres. /Aqui estão os meus rins, meu coração. /Não estou com os homens falsos /com os que têm as mãos sujas /de infâmia e de suborno. /Sigam eles assim. Sigam, perversos. /Sigam. Pois eu /por minha perfeição vou caminhando.»

Outros poemas:
.
A erva secou no telhado.
Não dá pão.

As minhas costas estão em carne viva.

Encham agricultores
o celeiro!

***
Calquei as minhas culpas, meus pecados.
Fugi para o silêncio. E entretanto
de mim, calado, o pranto todo o dia
jorrava, e este corpo esmorecia
ossos roídos de suor e febre.

– Não sejas – me disseste –
como aqueles cavalos dominados
somente pelo freio e pela mordaça:
eles só se aproximam, se confiam.

Entendi. Este canto bem o mostra.

***
Prometo que só ficarei atento
os séculos que forem necessários.
Atento nas promessas
que fazem os amigos
atento na justiça
com a paz na pista dos seus passos.

Vejam só que de frutos se enche a Terra!

***
Porque és eterno é que criaste o dia.
Porque és eterno é que me criaste a mim.


Do Livro dos Salmos, Mário Castrim; Editorial Campo das letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

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