Titula-se «O Hipnotizador», é escrito por Paulinho Assunção e vem do Brasil. Mesmo os resistentes à Literatura Brasileira, que não lhe divisam o «português açucarado», mas sim um ruído da língua de Camões, encontram na escrita deste autor uma expressão linguística espantosamente depurada a enformar uma prosa poética singular e hipnótica.
Repleta de personagens fantásticas, esta é uma narrativa sobre a demanda da escrita, a investigação do próprio caminho e da emoção da caminhada, por luz e trevas da cidade de Ouro Preto, aqui homenageada, para atingir o mundo todo. São mil e uma histórias inebriantes feitas de caminhada em caminhada, a bordo de letras andarilhas, com palavras que pedem palavras, «acasos dispersos que entram em convergência». «E não é saboroso esse exercício de pôr em andaimes as construções feitas de vento?», pergunta o narrador ao leitor sabendo que, rejubilante, este aplaudirá, aparelhado para a soberba viagem.
O narrador, Ferdinando Flauta Mágica, é um viajante que andou por muitos «mundos e caminhos em busca das chamadas coisas inacreditáveis. Ou improváveis. Ou duvidáveis.». Um nome misterioso de quem já teve «centenas de nomes» pela vida fora: nomes de «guerra» e de «paz», nomes «claros» e «escuros», nomes «oceânicos», esquisitos, ciciantes e murmurantes. O que viu «transborda de uma vida e vai preencher outras vidas mais», entenda-se, a de todos quantos lerem este excelso Diário de Viagem. O enredo desenvolve-se pela «dádiva de um chamado», refere o misterioso narrador, numa altura em que já é impossível abandonar a narrativa: um «convite para um encontro com o mistério do meu nome», eis o «tema desta história que, toscamente, e com a respiração desgovernada, eu conto a você, leitor, e a você, leitora.».
E tem o leitor em 109 páginas uma prosa límpida e alada, visual, musical e de odor inebriante, consequência de uma cabeça de viajante: «sempre desembestada e sem rédeas: basta um descuido e ela muda de trilhas. Basta um descuido e ela vai daqui para acolá, livre, sem freios. Essa é a dívida que pago por ser amante das histórias e das peripécias. Um homem como eu, um homem assim da minha espécie, está condenado a trilhar sem bússolas os caminhos feitos de pedra e os caminhos feitos de nuvens».
A «Sociedade de Contadores de histórias»
Tudo se passa «numa certa noite de Inverno», «num dos lugares mais misteriosos da cidade de Ouro Preto», onde o narrador acaba de chegar, vindo de muitas partes do mundo para as ceder àquele local. O desafio é conhecer a Cidade-Baixa, os subterrâneos de Ouro Preto, «lugarejos secretos» que Flauta Mágica – o que viaja de recordações e é «residente das lembranças» – assemelha aos que há sob Praga, Munique, Buenos Aires, Porto, e o «leme da imaginação» leva-o pela Grécia, Hungria, savanas africanas, ao interior de mosteiros espanhóis, à «meditação nas altas montanhas da Indochina». Assim se faz uma história sobre as peregrinações pelo mundo em busca de histórias. E assim se leva o mundo a uma pequena cidade transformando-a numa cidade do mundo.
A Ferdinando Flauta Mágica vão-se juntando outras tantas personagens surpreendentes para uma jornada de convívio com a «Sociedade de Contadores de Histórias»: entre muitos outros, estão Língua-Solta, homem de «rosto ameno e pacífico», apesar da «cicatriz em forma de lua minguante» a cortar-lhe a face, «olhos cor de pedra-sabão» e que, «embora seu nome indicasse o posto, parecia tudo fazer e tudo dizer com a língua guardada»; Centauro Veloz, um velhinho «galante e com nariz para o alto» que em jovem fora mordomo de dois governadores de Minas Gerais e com elegância segurava as tochas que iluminavam a caminhada «rumo às profundezas de Ouro Preto»; Jerónimo, um cego que sonhava com o fogo, e que o narrador imagina que tivesse asas, «as asas talvez de um anjo, talvez as asas de uma ave cuja espécie jamais conheceremos»; António-das-Hipérboles, homem «especialista em exagerar os factos do mundo» ; João Codax, um sineiro aposentado, com novas grandes missões; Maga Romena, especialista em dragões e conhecedora de todas as suas histórias «já escritas ou inventadas pelo mundo afora»; Nancy Cairo, «uma perfumista, fabricante de fragrâncias, inventora de odores, arquitecta de cheiros»; Magóia Coromande, uma detective que investiga o roubo das ossadas do «Hipnotizador» patrono da Petúnia Negra, organização dedicada aos estudos da hipnose, mas que é disputado por outra sociedade rival que o quer para patrono do seu mundo com grandes bibliotecas de ficção.
Todos percorrem os subterrâneos de Ouro Preto, rumam ao Salão das Histórias de Suspense, ao Salão das Histórias Intermináveis, ao Salão das Histórias Policiais, pelos corredores labirínticos onde a magia da imaginação acontece.
«O coração de um homem que acredita em fábulas é um coração destinado aos sobressaltos, aos disparos incontroláveis.» Por mais viajado que fosse Flauta Mágica, esperava-o o inesperado. Por mais livros que um leitor tenha lido, é o sobressalto, o espanto da leitura que ele procura. E, claro, o hipnotismo. Tudo está neste livro de Paulinho Assunção: «Ah, os filósofos. E os poetas. E os loucos. E as crianças. As mulheres apaixonadas. E os sem eira nem beira pelo morro abaixo das fantasias.».
O Hipnotizador, Paulinho Assunção; Editorial Campo das Letras, Porto, Fevereiro 2008
2 comentários:
vou comprar o original... vem com algum açucar nas entrelinhas...e andamos todos a precisar, de pelo menos, alguma sacarose.
obrigado pelo comentário do "branco e preto"
Uhm...estou a ver que vens do Brasil carregado de boas compras!
Muito bem, João
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