Há livros com sabedoria para saírem do presente levando-nos, leitores, em viagens donde retornamos mudados. «Histórias Falsas» de Gonçalo M. Tavares é um desses objectos de mudança: fora da sua esfera, e fora de si, o leitor pode regressar finalmente ao seu centro, numa espécie de «Conhece-te a ti mesmo».
Recuando três mil anos, ao tempo dos grandes filósofos, constroem-se nove pequenas estórias, com ficção encostada à verdade, com grandes revelações sobre a errância humana: o homem é um caminheiro numa vida de encruzilhadas e desvios de percurso, para melhor ou pior. O que interessa é mostrar os caminhos: «o homem que desce o caminho mais fácil deve também aprender o difícil, porque num qualquer momento, é certo, precisará dele.».
Pascal perguntava: «que quimera é o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, verme imbecil; depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro; glória e nojo do universo. Quem deslindará esta embrulhada?». Ora, é neste deslindar do ser humano que enquadramos a escrita de Gonçalo M. Tavares. As suas histórias de personagens aliam a ficção à reflexão existencial, dissecando o homem até à verdade: o homem é um sujeito de contradições, é ordem e desordem, afecto e ódio, razão e loucura, porque é racionalidade e irracionalidade. Como defende Edgar Morin, «Verdade e erro são antagonistas e complementares na errância humana», e Gonçalo mostra-nos isso como nenhum outro escritor.
No dédalo dos caminhos, conta-se a «história de Listo Mercatore» e as suas duas vidas, antes e depois de conhecer o filósofo Diógenes. Na primeira, «Bebia de manhã para ter coragem para enganar, à noite para esquecer os efeitos dessa coragem e para adormecer. Para alimentar o estômago, os sentidos e o desejo, precisava de dinheiro. Os banquetes e as mulheres alimentavam as farsas». À noite tinha sonhos que o atormentavam: «por mais que se ande, o que se andou permanece no corpo: chama-se cansaço, fadiga; ou memória. Ele agia e as suas acções permaneciam nos ossos, pesavam. Como aquele homem que vive com um punhal espetado nas costas e não tem determinação para se livrar da lâmina ou, em último caso, para pedir ajuda.».
Um dia, conhece Diógenes, o filósofo que comia, sentado no chão um prato de lentilhas. Com a arrogância de quem tinha o estômago farto, Mercatore disse-lhe: «Se tivesses aprendido a bajular o rei, não precisavas de comer lentilhas.» Diógenes respondeu-lhe à letra: «E tu – disse o filósofo – se tivesses aprendido a comer lentilhas, não precisavas de bajular o rei.». Esta resposta foi epifania para Mercatore. Perturbado, caiu em si. Tornou-se um asceta. Purificou-se. Quando morreu, no seu quarto estavam apenas algumas garrafas de água; e lentilhas» E o seu corpo «transmitia uma calma incomum. Morrera no meio do sono, tranquilo.».
Um dia, conhece Diógenes, o filósofo que comia, sentado no chão um prato de lentilhas. Com a arrogância de quem tinha o estômago farto, Mercatore disse-lhe: «Se tivesses aprendido a bajular o rei, não precisavas de comer lentilhas.» Diógenes respondeu-lhe à letra: «E tu – disse o filósofo – se tivesses aprendido a comer lentilhas, não precisavas de bajular o rei.». Esta resposta foi epifania para Mercatore. Perturbado, caiu em si. Tornou-se um asceta. Purificou-se. Quando morreu, no seu quarto estavam apenas algumas garrafas de água; e lentilhas» E o seu corpo «transmitia uma calma incomum. Morrera no meio do sono, tranquilo.».
Na «história de Aurius Anaxos», assiste-se à destruição de Aurius, primo do filósofo Anaxágoras, e por ele influenciado. Durante a vida, Aurius «entusiasmava-se inteiramente com um caminho, uma acção e, logo a seguir –por vezes mesmo no meio da subida – aí mesmo, a metade, desistia, virando costas e recomeçando, agora por outro lado, indiferente ao esforço que fizera para chegar àquele ponto». Quis mostrar que não era inconstante como o criticavam, tornou-se obsessivo e, ouvinte com mau ouvido, pois deturpava os ensinamentos, a inveja do primo tomou conta dele.
Na «história de Elia de Mircea», testemunhamos a aprendizagem de Elia, que tentava ser sábio e ouvia o mestre, o sábio Lao Tse, que ensinava: «o verdadeiro mestre não é o que força a passagem, é o que a seduz. Quando o mestre passa os cães não ladram, admiram.»; fácil é vencer quando se é mais forte; difícil é utilizar a força para os outros não perderem; mas só isso é justo.». Até que uma noite a intensidade que ensina entra-lhe no sonho, «um sonho com tanta importância que atravessou a parede, tornou-se real e consequente». Assim se mostra que a aprendizagem dura a vida inteira.
O sacrifício e o fulgor das figuras femininas
É recorrência no autor aliar à mulher o Amor e a Morte, constitutivos do drama existencial – como constatámos noutras suas obras apresentadas. Também neste livro, a mulher é o «animal com o coração maior que o corpo», a que nunca desiste do amor, a luz que se mantém quando no homem só há sombras. «A história de Julieta, a santa da Baviera» é representativa de mulheres «com a força que só o coração e o desespero conseguem», carregando às costas filhos e maridos, livrando-os da morte. Romeu, o duque da Baviera, era «obcecado pela procura e excessivo na rapidez com que passava pelas coisas»: ele e Julieta amaram-se «e no dia seguinte acordaram. Ela embevecida. Ele, com tédio». Cruel, «matava como o agricultor semeia», até que encontrou um adversário maior, que o derrotou. «Abandonado por todas as mulheres que ao longo da vida abandonara, teve um instante em que se arrependeu como acontece a todos os que se vêem frente à morte». Mas eis que aparece Julieta, já velha, ainda apaixonada, para o carregar às costas. Sem milagres, são os dois queimados – «só se pode odiar a mulher que ama o inimigo». Num último sacrifício, Julieta oferece primeiro às chamas o seu corpo, que só depois consomem o do seu amado. Por isso, enaltecendo-a, o adversário, o imperador Conrado III mandou construir-lhe, no local, uma estátua, «quase um milénio depois de Cristo ter levantado a ingénua hipótese do amor».
A «história de Lianor» é a de uma mulher recusada por Tales de Mileto – não por sobranceria, mas por prudência. As mulheres guardam no corpo a serpente, sempre pensara.». Ela quis morrer e atirou-se ao mar fazendo com que Tales levasse uma vida virada para a água onde o corpo dela desaparecera.
A «história de Faustina» fala-nos da esposa do Imperador Marco Aurélio – que dava à mulher «o pouco que pode dar quem do mundo se defende não esbanjando emoções» – que se apaixonou por um centurião. Traição irremissível, todavia pediu clemência para o amante: «A paixão, por momentos, a falar mais alto do que a ambição»; nesse acto chegava até onde pode chegar o amor: à total imprudência. Pedia o impossível, acelerava o inevitável». Os silêncios do Imperador «vinham de quem tem o poder: assustavam». Crendo que só o asco faria com que ela esquecesse aquele amor, o sangue quente do amante foi vertido sobre o corpo de Faustina, o que a atormentaria até à morte.
Surpreender a realidade pelo seu lado mais inesperado é um exercício perturbador, mas prenhe de revelação. E é de conhecimento que se trata, quando apreendemos a singularidade da expressão literária de Gonçalo M. Tavares.
Gonçalo M. Tavares, Histórias Falsas; Editora Campo das Letras, Porto, 2005
© Teresa Sá Couto
nota: a edição deste texto surge na sequência de pedidos, que há algum tempo tenho vindo a receber, sobre "por onde começar a ler Gonçalo M. Tavares". O último, feito por Adélia Riès, veio despoletar em definitivo a minha acção. As sugestões podem ser várias. Opto, todavia, por este «Histórias Falsas» e pelo «Água, cão, Cavalo, Cabeça», com texto que passo também a editar. Votos de Boas Leituras.
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