quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Poesia de solidão e erotismo

«Guardas tudo de mim / – não sei se entendes /a ternura da dádiva – /também não te pergunto…/ para quê? /O meu amor é isto: /desejar-te em segredo /pouco esperar do que vier de ti /e nada te pedir.».

Afirmar o discurso amoroso na extrema solidão que o caracteriza é a proposta do belíssimo livro «Discurso amoroso» de Maria Aurora Carvalho Homem que assina vinte e um poemas com sabor, cheiro, segredos e erotismo; Francisco Simões faz os desenhos que delineiam o apelo dos corpos e a fusão dos incêndios. A Editora Campo das Letras dá guarida aos discursos num livro com formato A4, papel cartonado sépia clara – capa e páginas.

Adolfo Casais Monteiro escreveu que a poesia dá «aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas». Miguel Torga escreveu que a poesia «Desassossega o mundo sossegado» do poeta, e instiga-o a ensinar «a cada alma a sua rebeldia.». Finalmente, Teixeira de Pascoaes definia assim a poesia: «A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água». Indissociável da vida, a poesia é a mais pura, secreta e silenciosa fala do homem. O livro que aqui refiro é mais uma voz dessa linguagem primordial.

Disse Roland Barthes que «Dis-cursus é, originariamente, a acção de correr para aqui e para ali, são as idas e vindas, as “tarefas”, as “intrigas”, e que «o apaixonado não deixa, na verdade, de correr dentro da sua cabeça, de empreender novas tarefas e de fazer intriga contra si próprio. ». Tendo por guia o sentimento amoroso resgatado à criação da palavra, Maria Aurora Carvalho Homem oferece-nos um «Discurso Amoroso» tecido de frémito, de respiração e sufoco, de aridez que pede chuva, com fortíssimo erotismo que desvela o sabor do corpo, o cheiro e os segredos: «é um perfume raro /(Segurelha? Alecrim?) /não sei. /É o cheiro que tenho /quando tu sais de mim.».

O apelo táctil do papel, morno nestes dias frios, páginas sépia clara, longas e nuas, intercalando com páginas onde se imprimem os poemas, noutras os desenhos, como uma pele que se percorre e descobre, concorre para envolvência dos sentidos. Os desenhos, embora – ou talvez por isso mesmo – recriem os corpos com frágeis linhas a carvão, são de uma beleza e intensidade ímpares.

E diz o texto de um amor de exílio, de «convulsão do ventre», e «arrepio das veias», que mais não precisa do que «indícios breves» para o embalo e o murmúrio:
«Ardo sozinha /a mão convulsionada /a desenhar-te em mim»

«Nomeio-te em segredo /e não te digo /retenho-te nos olhos /e tudo acende»;

«Quero-te assim /longínquo e doce /terno e ausente /só posso desejar-te nas palavras»;

Ou, na íntegra:

Percorro-te
A língua de cetim
A prolongar o êxtase
As mãos de seda
No rio do teu corpo.
Afloro a nascente:
E num grito
Todo tu és torrente.


O coração está presente em todo o livro, fazendo jus ao que dele disse Roland Barthes: «o coração é o órgão do desejo (o coração incha, desfalece, etc., como o sexo), tal como este é retido, encantado, no campo do Imaginário. O que é o mundo, o que é que o outro vai fazer do meu desejo? Eis a inquietação onde se concentram todos os movimentos do coração, todos os “problemas” do coração.».

No belíssimo poema que a seguir transcrevo, o coração é, ainda, apanhado na armadilha do tempo indomável e destruidor. Confira-se:

É tarde, meu amor
É muito tarde.
O tempo implacável me consome
E destrói o vigor do corpo moço:
Apagou o fulgor do meu olhar
Roubou a altivez do seio cheio
Secou o rio manso do meu ventre
Cobriu de pergaminho a minha mão
É tarde, muito tarde
Mas… por dentro
Ainda bate, por ti, o coração.

Discurso Amoroso, Maria Aurora Carvalho Homem, desenhos de Francisco Simões, Editorial Campo das Letras, Porto 2006

© Teresa Sá Couto

(to Artur)

7 comentários:

Luís Sampaio disse...

Esse Artur é alguém com muita sorte!!
Esse livro é, como diz, belíssimo e esta sua abordagem não o é menos.

Anónimo disse...

.....vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos
.... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir....
.... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras....
.... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...
artur ;)

Teresa disse...

...e a noite ilumina-se marchetada de estrelas.
Distante, o lado esquerdo, oprimido, liberta-se por fim,
e o frio retorna ao fogo
e a lava ácida espuma o sangue rubro
e os corpos, ao som dos passos lassos,
enchem-se de sentido.
Estranha a essência da terra, estranha semente esta!!

TSC

Anónimo disse...

Como vi que havia novidades, passei aqui para ler.
J

Teresa disse...

Obrigada, Joni
Já coloco novos textos, agora na área do Ensaio.
Bjinhos
TSC

Isabel Victor disse...

«o verdadeiro mestre não é o que força a passagem, é o que a seduz. Quando o mestre passa os cães não ladram, admiram.»

Pego nesta citação da Lao Tsé, aqui enunciada, para ilustrar a mestria de " comLivros- Teresa".

Impossível não desejar. Impossível ___________ parabéns ! :))



Não conhecia ...
Agradeço à CSD




Abraço


iv

Teresa disse...

Isabel,
Talvez quisesse colocar essa citação do Lao Tse no post anterior, titulado «Histórias Falsas» encostadas à verdade...mas aqui também fica que nem uma luva ;)

Obrigada pelas suas palavras! Soube bem!

Beijos
TSC