quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Ímpetos de amor em «Os Versos do Capitão»

«Os Versos do Capitão» de Pablo Neruda é um livro pleno de «arrebatamentos de amor e fúria» que se manteve durante bastante tempo no anonimato. Finalmente reconhecido pelo autor e editado, o livro caminhou sozinho, reconhecendo o autor e reconhecendo talvez o único português que o poderia traduzir: o poeta Albano Martins. Lançado entre nós pela Campo das Letras, em 1996, a obra está já na sua 11ª edição.

«Os versos do Capitão», no original Los versos del capitan, foi publicado em 1952, e traduzido por Albano Martins em 1996. Na imensa obra do poeta chileno, estes poemas são considerados um “Intervalo lírico e íntimo”, embora com a mesma intensidade dos Veinte poemas de amor e una canción desesperada. Na representação que aqui deixo parece-me ser essa marca evidente. Tal como o é a sua história de amor, que pode ser de qualquer um de nós, ou como o próprio afirma: «Ai, vida minha, / entre nós não arde só o fogo, / mas a vida toda, / a história simples, /o simples amor / duma mulher e dum homem / parecidos com todos».

Sensuais e sanguíneos, os versos revelam-nos o poeta como oleiro do amor e da palavra. E espelham-nos a nós, que no próprio barro esculpimos a essência e o sentido da vida: «Há em todo o teu corpo /uma taça ou doçura a mim destinada // como se te houvessem, meu amor, feito de argila /para as minhas mãos de oleiro. /Os teus joelhos, os teus seios, / a tua cintura, /faltam em mim como no côncavo /duma terra sedenta /a que retiraram /uma forma /e, juntos, / estamos completos como um só rio, /como um só areal.».

A mulher é o barro com que o homem se molda

Nesta “história” íntima do poeta ou, simplesmente, do homem e da mulher, a fêmea amada é a Rainha proclamada, a desejada, a única, a que concentra todo o frémito e razão de vida do sujeito poético:«Proclamei-te rainha. /Há-as mais altas do que tu, mais altas. /Há-as mais puras do que tu, mais puras. /Há-as mais belas do que tu, mais belas. /Mas tu és a rainha. //E, quando surges, /todos os rios marulham /no meu corpo, os sinos/ abalam o céu, /e um hino enche o mundo. /Apenas tu e eu, /apenas tu e eu, meu amor, /o escutamos.».

Os pés e as mãos surgem não só como elos tácteis, sensuais e eróticos, mas também ao serviço de razões místicas e arroubos espirituais de paixão: «Mas se amo os teus pés /é só porque andaram /sobre a terra e sobre/ o vento e sobre a água, /até me encontrarem.».

Com as suas mãos, o poeta perscruta o corpo da amada, como um mapa infinito: «Vês estas mãos? Mediram / a terra, separaram / os minerais e os cereais, / fizeram a paz e a guerra, / derrubaram as distâncias / de todos os mares e rios / e, no entanto, / quando te percorrem / a ti, pequena, / grão de trigo, calhandra, / não conseguem abarcar-te // Nesse território, / desde os pés à fronte, / andando, andando, andando, /passarei a vida.».

Com «As tuas mãos», as mãos da amada, cumpre-se um destino: «e quando puseste /as mãos no meu peito, /reconheci essas asas / de pomba dourada, / reconheci essa greda / e essa cor de trigo. / Passei os anos/ da minha vida a procurá-las. / Subi as escadas, /atravessei os recifes, /levaram-me os comboios, / as águas me trouxeram, / e na pela das uvas /imaginei tocar-te. / De repente a madeira /trouxe-me o teu contacto. / As amêndoas anunciavam-me /a tua secreta doçura, até que as tuas mãos / em meu peito se fecharam / e ali como duas asas / terminaram a viagem.».

No singelo e, talvez por isso, magnífico poema «O teu riso» evidencia-se a subjugação de amor, mas com a felicidade que só os amantes entendem:

«Tira-me o pão, se quiseres, /tira-me o ar, mas não / me tires o teu riso. Não me tires a rosa, /a lança que desfolhas, / a água que de súbito / brota da tua alegria, /a repentina onda de prata que em ti nasce. / A minha luta é dura e regresso /com olhos cansados /às vezes por ver /que a terra não muda, /mas ao entrar teu riso /sobe ao céu a procurar-me/ e abre-me todas/ as portas da minha vida. // Ri-te da noite, /do dia, da lua, /ri-te das ruas / tortas da ilha, / ri-te deste grosseiro /rapaz que te ama, / mas quando abro / os olhos e os fecho, /quando meus passos vão, / quando voltam meus passos; /nega-me o pão, o ar /a luz, a primavera, / mas nunca o teu riso, /porque então morreria.».

Os caminhos e desalinhos do amor

Os amantes são sempre uma Ilha ainda que às vezes fustigada por ventos. A sua perseverança encontra uma linguagem própria para exprimir a sua vontade de isolamento: «O vento é um cavalo:/ ouve como ele corre /pelo mar, pelo céu./ Quer levar-me: escuta / como percorre o mundo / para levar-me para longe. / Esconde-me em teus braços / por esta noite apenas, / enquanto a chuva abre / contra o mar e contra a terra / a sua boca inumerável. // Deixa que o vento corra /coroado de espuma, / que me chame e procure / galopando na sombra, / enquanto eu, submerso / sob os teus grandes olhos, / por esta noite apenas / descansarei, meu amor.».

Em «Ausência» apela-se à espera. E promete-se, em jeito de exigência: «Meu amor, /encontrámo-nos / sedentos e bebemos/ toda a nossa água e o nosso sangue, /encontrámo-nos / com fome / e mordemo-nos / como o fogo morde, / deixando-nos em ferida. / Mas espera-me, / guarda a tua doçura. / Eu te darei também / uma rosa.».

Os Versos do Capitão, Pablo Neruda, tradução para português de Albano Martins; Editora Campo das Letras, Porto

(to Artur)

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Anónimo disse...

esse devia ser (to Hugo) :P

Esse livro é lindo. Foi o segundo que comprei dele - a seguir ao Cem Sonetos de Amor.

Uma coisa curiosa é que sempre fui apaixonado pela capa do livro e só há pouco tempo descobri que a imagem vem de uma solarização do Man Ray.

Neruda foi realmente um dos maiores escritores da Humanidade. E acho que só consolidei essa ideia depois de ter lido o Confesso que Vivi. O modo como ele escreve as memórias, em prosa, é poético e apaixonante.

Teresa disse...

É verdade: és apaixonado por Neruda! Mas ainda não editei tudo sobre ele que, e subscrevo, foi «um dos maiores escritores da Humanidade»!

Pois essa explicação da capa era-me desconhecida! É realmente uma magnífica capa. OBRIGADA!!

Bjinhos
TSC

Luís Sampaio disse...

Fascina-me a forma como lê, retém partes de texto, reorganiza-os e põe-nos à frente uma sua tese sempre mágica.

Teresa disse...

Obrigada, Luís, pelas palavras gentis.
TSC