No ensejo do novíssimo Dicionário de Fernando Pessoa e Do Modernismo Português, recordo o romance histórico «José e os Outros, Almada e Pessoa – romance dos anos 20» de José Augusto França, onde o autor reconstrói a efervescência do primeiro Modernismo tendo como protagonista o ímpar José de Almada Negreiros, poeta d`Orpheu, Futurista e Tudo.
À pesquisa apurada, enformada num processo narrativo vivo e arrebatador, marcas de José Augusto França, este romance histórico surpreende, também, pela paixão com que reedifica a época cultural de todas as vertigens, patente na asserção «Morra o verbo parar e o verbo recuar». Um livro singular sobre a singularidade da cultura portuguesa com o autor a juntar-se àquele outro grupo que fez da transgressão a atitude de combate a todos os imobilismos. Inconformado com o seu tempo, Almada incentivava à criação: «O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos faltam as qualidades».
«Um Portugal mais pequenino e com as pessoas mais gordas»
O enredo da narrativa tece-se sobre os 7 anos que Almada Negreiros esteve em Portugal, vindo de Paris, a 7 de Abril de 1920, até à sua partida para Madrid, a 6 de Abril de 1927. Trazia na mala, para publicar, o poema-história dessa pátria perdida e achada e na alma um juramento para cumprir: «o seu povo era o mais pequeno mas não havia, ele, José, de lhe mostrar a grandeza? Ele ia querer ser o melhor de todos os Portugueses – mas só poderia sabê-lo quando desembarcasse na estação e chegasse ao meio do Rossio». Por isso, «José via no vidro da janela o seu reflexo e os grandes olhos com que o fitava eram os seus – que furavam por detrás de tudo!». E, na vidraça embaciada da carruagem que o trazia, filho pródigo, registava a equação 1+1=1, com o Um final a representar a soma de si próprio duas vezes – o homem uno na sua diversidade –, desenhava um coração que representava a equação, e escrevia Ecce Homo.
À chegada, sem ter avisado, como era seu timbre, contacta com o Portugal estagnado que atabalhoadamente tenta inserir-se nas novidades. Detém o olhar num «empregado triste», a caminho do seu hotel favorito, o Borges, regista cocheiros e carros disputando o mesmo espaço das ruas, os carros «ainda mal afeitos àquela promiscuidade com as bestas, passa pela Brasileira do Chiado, «Casa Especial do café paulista» e «a impressão dizia-lhe que tudo estava mais pequenino – e com as pessoas mais gordas! Era como se tivesse desembarcado em Beja.».
Recorde-se que o primeiro Modernismo nasceu e cresceu num contexto histórico nacional e europeu problemático: o Ultimato, a queda da Monarquia, a instauração da República, com a instabilidade que se lhe seguiu, e a Primeira Grande Guerra Mundial. A Revista luso-brasileira Orpheu (Março de 1915), fundada por Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, surge na escala daquele tempo complexo, vário, ruidoso, assassino, acelerado, com textos agressivos e revolucionários, com a própria palavra a sofrer uma «revolução tipográfica» muito influenciada pela pintura, que lhe abria os horizontes. O grupo denunciava e reagia violentamente contra a vulgaridade, pretendendo criar um Portugal novo.
As novas ideias eram estimuladas por ecos vindos do estrangeiro, nomeadamente pela moda de Paris trazida por Mário de Sá-Carneiro e Santa Rita-Pintor. Fernando Pessoa, mestre da “poesia dramática”, foi um dos elementos mais importantes do grupo, e tem uma presença fortíssima nesta narrativa: sem ser o protagonista, ele está sempre lá, alimentando-nos a aura de mistério que o envolve. As teses de Almada eram discutidas com o amigo Fernando Pessoa: «Eles que eram individuais a dois».
Ainda que a revista tivesse apenas dois números, o grupo continuou a manifestar-se em jornais e outras publicações, com destaque para a revista A Águia e mais tarde a revista Presença, esta já no segundo modernismo, mas prova do diálogo incessante. A narrativa de Augusto França apresenta toda esta ambiência. Os anos 20 foram precisamente os mais agitados da história da Primeira República, ensombrados pela noite sangrenta de 10 de Outubro de 1921, com assassinatos políticos. Delineava-se o caminho para a ditadura militar, com opinião corrente, em 1924, que «só a ditadura nos podia salvar».
Com os olhos postos na eternidade
A narrativa abre com um «dia importante, um dia definitivo para os destinos da arte portuguesa!». Corria o ano de 1925 e inauguravam-se pinturas de vários artistas na Brasileira do Chiado, espaço de confluência de artistas e tertúlias, ambiente de modernidade – a par do Bristol-Club. Eram dois os quadros de Almada, e que permaneceram no café Brasileira até 1971: «As Banhistas» e «Auto-retrato com Grupo da Brasileira», ambos de 1925 – este a fazer a capa do livro. António Soares, Jorge Barradas, Eduardo Viana, Stuart Carvalhais, José Pacheco e Bernardo Marques foram os outros artistas representados. De todos nos fala a ficção de Augusto França, pelos nomes com que se tratavam uns aos outros, apresentados por um narrador que se move entre todos, cúmplice de todos e enredando por esta via o leitor nos espaços, nas azáfamas, e até na intimidade psicológica de cada um.
A narrativa constrói-se com paixão e admiração transbordantes pelo menino d´olhos de gigante. Dá-nos conta das naturezas que lhe nasciam e que ele fazia brotar em génio criador. Desenho, dança, pintura, teatro, romance, poesia, Ultimatos, conferências, todos manifestos de irreverência para demolir alvos, recados para o futuro. Tudo passa pela narrativa ao ritmo desenfreado em perfeito diálogo com a dinâmica da época de vertigem onde «tudo se move, tudo corre e se transforma rapidamente» (in Portugal Futurista 1917). Faz-se um close-up às obras de Almada proporcionando ao leitor o pulsar mágico da criação.
A obra «A Invenção do Dia Claro» surgia «na claridade do dia que assim se inventava», com conferência marcada para 1920, depois adiada um ano, mas ainda adiantada no tempo português não preparado para aquela nova forma de juntar letras como quem faz desenhos. E José, com as palavras arrumadas, alheado da assistência que indagava «onde queria chegar Almada?» – alheado porque o discurso que proferia já não lhe pertencia – dizia que se um homem tem uma dúvida deveria levá-la «até á loucura, sem medo», porque «se não o fizer, se a loucura puder mais do que ele, fará do homem o pior de todos» porque ele, José, deveria saber dominá-la, ou dominá-las. As palavras tinham-lhe servido para chegar a essa conclusão de paz e de luz». Assim se estrutura brilhantemente a ficção de Augusto França apoiando-se nas palavras do próprio Almada quando aludiria ao poder de agir e criar as coisas: «vê bem na tua mão, nas linhas da tua mão. Não duvides. São a tua loucura. Agarra-as bem, não as deixes sair da tua mão».
Pelo mesmo processo de reconstrução do indizível, aborda-se o conto O kágado, alegoria do processo de reencontro do indivíduo consigo mesmo, numa derivação socrática do «conhece-te a ti mesmo» ou, à maneira de Almada, «nunca chegará à obra quem não tiver chegado ao Kágado», o Nome de Guerra e revisitam-se todos os outros textos de Almada. Mas não só: a «facção plástica do Orpheu» tomou a peito o estudo sobre os painéis de São Vicente expostos no Museu das Janelas Verdes, atribuídos a Nuno Gonçalves, sobre qual seria a sua verdadeira posição, e, em 1918, Almada faz um pacto com Amadeo de Sousa-Cardoso e Santa-Rita Pintor. Augusto França recupera a estória do pacto: os três cortaram e raparam a cabeça e as sobrancelhas e assim ficariam até que o problema dos painéis fosse solucionado. Apesar do falecimento dos dois amigos, Almada, ainda que só, não abriu mãos da tarefa, e a ficção dá-nos conta do momento da revelação, em Março de 1926:
«mas foi José quem deu por um desacerto na perspectiva que a toda a gente tinha escapado, nos ladrilhos do pavimento (…) acertando a tal perspectiva no conjunto dos seis painéis, fazia dos dois trípticos um políptico único: lá estava: era só acertar os ladrilhos».
Esse «só» era a «descoberta do século», com a notícia da proeza portuguesa a seguir célere pela Europa Culta. O menino dos olhos de Gigante resolvia o Ecce Homo e cumpria no futuro o pacto que fizera com os amigos.
José Sobral de Almada Negreiros morreu aos 77 anos, em 1970, no mesmo quarto do Hospital de São Luís onde morreu o seu grande amigo Fernando Pessoa. Este livro de José Augusto França é uma homenagem à imortalidade do homem que tinha as pupilas de «cristal de rocha» e ao perpétuo canto da geração de Orpheu.
José e os Outros, Almada e Pessoa – romance dos anos 20, José Augusto França; Editorial Presença; Abril 2006
Esse «só» era a «descoberta do século», com a notícia da proeza portuguesa a seguir célere pela Europa Culta. O menino dos olhos de Gigante resolvia o Ecce Homo e cumpria no futuro o pacto que fizera com os amigos.
José Sobral de Almada Negreiros morreu aos 77 anos, em 1970, no mesmo quarto do Hospital de São Luís onde morreu o seu grande amigo Fernando Pessoa. Este livro de José Augusto França é uma homenagem à imortalidade do homem que tinha as pupilas de «cristal de rocha» e ao perpétuo canto da geração de Orpheu.
José e os Outros, Almada e Pessoa – romance dos anos 20, José Augusto França; Editorial Presença; Abril 2006
© Teresa Sá Couto
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